O fenômeno não é novo, mas vem se acentuando nos últimos anos. O movimento evangélico ganha terreno em Cuba e interfere na evolução da sociedade e até mesmo em direitos básicos dos cidadãos. Em 2019, o ramo mais conservador desta igreja se apropriou do debate sobre a nova constituição do país, impedindo, por exemplo, que o casamento entre as pessoas do mesmo sexo fosse legalizado. Em Havana, a RFI conversou com especialistas em religião e líderes evangélicos para compreender a questão.
Como explicar que haja tanto espaço para as Igrejas Evangélicas em Cuba? A chefe do Departamento de Estudos Sociorreligiosos do Centro de Pesquisas Psicológicas e Sociológicas do país (Cips), Ileana Hodge Limonta, lembra que a religiosidade do povo cubano é diversa e complexa, muito distante da imagem do país de tradição católica ou do ateísmo de Estado imposto no início da Revolução de 1959. “Cuba não é um país de tradição católica, mesmo que as estatísticas apontem o contrário. Os dados sobre a quantidade de batismos, emitidos pela Igreja Católica, definitivamente não correspondem à realidade do povo cubano”, defende.
A especialista lembra que o catolicismo dos colonizadores espanhóis e as múltiplas religiões dos africanos escravizados, trazidos durante o Império da Espanha, no final do século 15, se fusionaram, dando origem à expressões religiosas como a Santería. O mesmo fenômeno ocorreu antes do início do século 20, quando o espiritismo do educador francês Alain Kardec chegou ao país, através de voluntários europeus que vinham lutar contra a independência de Cuba, e misturou-se também às religiões indígenas das populações autóctones.
A partir dos anos 1930, começaram a desembarcar em Cuba os protestantes americanos e seguidores de suas vertentes, como metodistas, batistas, presbiterianos e episcopalianos. Nos anos 1950, é a vez dos pentecostais chegarem ao país, aproveitando-se dos vazios religiosos em regiões agrícolas do interior cubano.
“Isso é o que caracteriza as religiões em Cuba: a religiosidade popular, que é um fenômeno baseado mais na prática do que na teoria. Há pessoas que seguem várias expressões religiosas, até cinco ao mesmo tempo. Afinal, o ateísmo do início da Revolução não fez com que as pessoas deixassem de lado sua religiosidade. Ao contrário do que pensam, nosso país está tão aberto que as novas tendências evangélicas e, entre elas, as fundamentalistas, têm espaço aqui.”
O fenômeno do “ensaboamento”
O pesquisador Pedro Alvarez Sifontes, especialista em fundamentalismo do Cips, explica que crise econômica pós-Revolução, nos anos 1990, também contribuiu para a popularização das igrejas evangélicas – um fenômeno chamado de “ensaboamento”. “Líderes evangélicos, vindos dos Estados Unidos, começaram a distribuir entre a população mais necessitada produtos como sabonetes, detergente, óleo de cozinha, roupas, enfim, artigos de primeira necessidade que não eram acessíveis a todos em Cuba naquele momento”, relembra.
Esse tipo de evangelização que Sifontes classifica de “simplória”, principalmente por parte dos neopentecostais, mexeu com a emoção de um povo que passava por muitas necessidades, facilitando a promessa de “milagre” vinda de algumas instituições religiosas, como a Assembleia de Deus, a mais célebre até hoje entre a população mais desfavorecida de Cuba. “É uma evangelização absolutamente manipulada, através da qual se apropriam de elementos bíblicos que lhes convêm, com uma tendência à guerra espiritual, demonizando todos os que não estão de acordo com eles. Utilizam a teologia do domínio, segundo a qual, o chamado ‘Reino de Deus’ precisa ser construído imediatamente e a qualquer custo, passando por cima de todo o processo religioso pluralista e diverso.”
Aumento do conservadorismo na sociedade cubana
Os neopentecostais vêm conquistando tantos fiéis nos últimos anos que têm contribuído para a exacerbação do conservadorismo na sociedade cubana. Um dos exemplos mais recentes é a imensa campanha que realizaram contra o casamento entre as pessoas do mesmo sexo. O movimento ficou famoso devido a cartazes exibidos em todo o país que mostravam “a família original”, com o desenho de um pai, uma mãe e dois filhos, “como Deus criou”, indica a mensagem.
Em resposta, lideranças LGBTQI+ criaram a campanha “uma família muito original”, com cartazes que exibem diversos tipos de casais. O ato, financiado pelos próprios militantes, não chegou a ter o impacto desejado devido à falta de verba.
O célebre artigo 68, que autorizaria o matrimônio para todos, deveria ter entrado no referendo para a nova constituição, realizado em fevereiro deste ano, após meses de debate entre os cubanos. Mas a pressão dos evangélicos conservadores foi tamanha, que o governo decidiu voltar a discutir a questão somente daqui a dois anos, antes da aprovação do novo Código da Família.
No entanto, nem todos os braços da Igreja Evangélica de Cuba, veem com bons olhos o movimento contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É o caso da Primeira Igreja Presbiteriana e Reformada de Havana, onde a pastora Liudmila Hernández Retureta lembra que os valores de justiça e de igualdade devem ser a base qualquer religião.
“Embora não tenhamos um posicionamento oficial sobre o casamento para todos, somos uma igreja inclusiva e defendemos a imagem de Deus que existe em cada ser humano. Cada pessoa tem a liberdade de se casar, de se unir ou viver sua vida da maneira que achar melhor. O artigo 68 dizia que o casamento é uma união entre duas pessoas e nós não temos nada contra uniões entre um homem e uma mulher, então também não temos nada contra uma união entre dois homens ou duas mulheres. Baseado neste princípio de amor e respeito para com os seres humanos, devemos dar as boas vindas a todos, evitando o discurso de ódio, de preconceito e de divisão”, afirma.
Por outro lado, a pastora se preocupa com o fundamentalismo da igreja evangélica, que vem adotando uma postura desafiadora até mesmo em relação ao governo cubano. “Com um discurso que se diz baseado em textos bíblicos, querem mostrar que os avanços da sociedade são negativos e se colocam até mesmo contra o projeto político do país. Muitos pastores, por exemplo, decidiram parar de enviar seus filhos para a escola devido à educação em prol da inclusão em vigor atualmente – contra o bullying, o preconceito e esterótipos. Esse tipo de atitude não é apenas fundamentalista, mas é contra a lei, porque em Cuba a educação é pública e obrigatória. As crianças têm que ir à escola. Alguns pastores estão, inclusive, sendo processados pelo Estado”, destaca.
Aliança Evangélica: ultraconservadores com aspirações políticas
A exacerbação do fundamentalismo evangélico vem sendo marcado também por um racha dentro da instituição. Há alguns meses, quatro igrejas ultraconservadoras deixaram o Conselho das Igrejas de Cuba (CIC) – organização que reúne todas as confrarias cristãs do país – para criar a Aliança das Igrejas Evangélicas Cubanas. A justificativa foi “focar-se na unidade e na defesa da doutrina e dos princípios bíblicos”.
Entretanto, para outros integrantes do CIC, houve um claro o desencontro teológico e político. A pastora Elaine Saralegui Caraballo, da Igreja Metropolitana de Cuba, aponta o debate para o projeto de constituição como o ápice da revolta, quando evangélicos conservadores passaram a denunciar o que classificam de “propagação da ideologia de gênero por parte do governo”.
“O objetivo deles não é criar uma fé autêntica ou uma conexão pessoal e comunitária com Deus, mas consolidar o poder em benefício do poder.
Defendem que a violência contra certas pessoas seja normalizada e moralmente aceitável, criando mitos sobre o que está correto ou não. É uma forma de violência espiritual causada por ideologias religiosas que negam o valor sagrado das pessoas”, ressalta.
Em um artigo publicado na Q de Cuir, revista digital cubana LGBTQI+, a pastora Elaine chama atenção para o apoio dos evangélicos conservadores a personalidades e movimentos extremistas, até mesmo no Brasil. “Em seus perfis no Facebook, essas igrejas e seus líderes manifestam empatia até ao Estado de Israel e ao sionismo cristão, enaltecem figuras fascistas como Jair Bolsonaro, Donald Trump e promovem notícias sobre lugares onde se derrotou a ‘ideologia de gênero'”, escreve.
Já para a pastora Liudmila não há dúvidas de que por trás desse movimento fundamentalista há aspirações políticas claras. “Penso que a formação da Aliança Evangélica é um processo que estavam preparando há muito tempo e que está relacionado com um contexto político conservador em ascensão nos Estados Unidos e na América Latina. É muito mais do que uma organização : é uma espécie de partido, que conta com muitos recursos, é apoiado por muita gente e defende ideias muito além dos princípios bíblicos”, adverte.
O presidente do Conselho das Igrejas de Cuba, o reverendo Antonio Santana Hernández, não esconde o desconforto ao falar sobre a Aliança Evangélica. “Não gosto da palavra separação. Sou fascinado pela unidade. A separação nos divide e, ao contrário, precisamos nos unir”, diz. Segundo ele, as igrejas “separatistas” reclamam de não se sentirem representadas pelo CIC. “No entanto, nossa missão não é a representatividade, mas favorecer espaços de diálogo, celebrações e acompanhamento a cada uma das 29 igrejas que fazem parte da nossa organização”, justifica.
Hernández diz estar a par das “intenções políticas” dos fundamentalistas, mas não vê as instituições separatistas como “inimigas”. “Não sou ingênuo a ponto de não estar atento para que não estraguem todo o trabalho que o Conselho desenvolve há 80 anos. Mas continuaremos promovendo a confraternização porque vivemos em um mundo que precisa de paz e entendimento para que todas as pessoas possam ser felizes, dentro de todos os avanços que podem favorecer o ser humano”, reitera.
O pesquisador Pedro Alvarez Sifontes destaca que esse movimento fundamentalista evangélico é “muito bem planejado e bem dirigido”. “Eles sabem exatamente onde abrir suas igrejas, conhecem todas as características das paróquias onde se instalam, a grande quantidade de dinheiro que devem investir, sabem o líder que devem colocar e assim vão ganhando espaço”, destaca.
Já a pesquisadora Ileana Hodge Limonta salienta que, embora Cuba seja uma ilha e sua economia esteja bloqueada pelos embargos econômicos, o país se insere dentro do processo político vivido por grande parte das nações latinoamericanas neste momento, onde movimentos ultraconservadores e líderes populistas se aproveitam da decepção do eleitorado para propor soluções milagrosas e antissistema. Os fundamentalistas evangélicos, segundo ela, se beneficiam dessa situação. “É um fenômeno diante do qual o governo está com mãos atadas. O que o Estado faz é aplicar suas políticas públicas em prol do bem-estar, da diversidade e da inclusão, para tentar atenuar os efeitos desse movimento, mas mas, infelizmente, não tem como proibir que continuem a atuar. Engana-se quem acha que o governo cubano tem esse poder”, conclui.
Fonte: RFI.