Nos dias que se seguiram ao ataque que matou o general iraniano Qassem Soleimani, a timeline dos brasileiros no Twitter foi inundada por posts em defesa do Irã — invariavelmente escritos por perfis “de esquerda”. Houve quem se colocasse do lado dos aiatolás com o argumento de que, supostamente, o Irã não teria atacado nenhum país nos últimos anos, ao contrário dos Estados Unidos. Outros mostravam-se horrorizados com o fato de o presidente americano Donald Trump ter ordenado o assassinato de um “legítimo” representante do governo de outro país.
Como já disse aqui, há motivos para criticar a ordem de Trump. Entre eles, a possibilidade de que a eliminação de Soleimani tenha o efeito contrário do que o esperado pelo governo americano. Em vez de evitar uma guerra, pode iniciar uma. Em vez de conter o avanço do Irã no Oriente Médio, pode ajudá-lo.
Mas trata-se de um conflito de quatro décadas, esse entre Estados Unidos e Irã, e algumas decisões duras muitas vezes precisam ser tomadas. Seria perfeitamente possível ficar só na crítica à decisão de matar Soleimani sem precisar partir para a defesa do Irã. Por alguma razão, porém, parte da esquerda brasileira não consegue ficar dentro desse limite.
Por que essa parcela da esquerda brasileira se vê aprisionada na máxima de que “o inimigo do meu inimigo é o meu amigo”, permitindo que o ódio a Trump e ao presidente Jair Bolsonaro (que se enxerga como discípulo do americano) a deixe cega para o que o regime iraniano representa de pior em relação a algumas das principais bandeiras da própria esquerda, como os direitos LGBT e o feminismo?
Para quem critica Bolsonaro por ser homofóbico e misógino, a simples ideia de passar a mão virtual na cabeça de um regime que oprime as mulheres e pune a homossexualidade com a pena de morte por enforcamento deveria provocar repulsa. Mas não provoca.
Em junho do ano passado, um jornalista alemão perguntou ao ministro das Relações Exteriores iraniano por que o país enforca gays por serem gays. Mohammed Javad Sarif disse: “Nossa sociedade tem princípios morais. E nós vivemos de acordo com esses princípios. Esses princípios morais dizem respeito ao comportamento das pessoas em geral. E isso significa que a lei é respeitada e a lei é obedecida.”
É de se pensar se a esquerda brasileira, ao ler uma justificativa dessas, tira de alguma gaveta mental o salvo-conduto do relativismo cultural e dá de ombros: “Essa é a cultura deles, temos que respeitar”.
O relativismo cultural, no entanto, não é o bastante para explicar o apoio de parte da esquerda brasileira ao Irã.
A razão está em uma narrativa ainda mais poderosa, capaz de unir povos, ideologias, interesses e modos de viver opostos: o anti-imperialismo.
A ideia de que os Estados Unidos são uma nação maquiavélica que age para dominar os povos do mundo por todos os meios é o que une o discurso dos aiatolás, cujo regime não se enquadra facilmente em uma classificação política de esquerda ou de direita, ao de uma certa esquerda ultrapassada, que se encanta com ditaduras como as da Venezuela e de Cuba e que vê o mundo de hoje com os óculos da Guerra Fria.