Mesmo antes do fim, a pandemia do novo coronavírus entrou no rol das grandes crises globais da humanidade — afinal, além dos efeitos sanitários, a Covid-19 trouxe consequências econômicas e políticas que serão sentidas pelos próximos anos.
Considerando os mais de 100 anos passados desde a Gripe Espanhola (1918-1919), a maior pandemia do Século XX, outros marcos da história mundial trouxeram aprendizados e mudanças na política, na economia e na ciência. Alguns deles são:
- ‘Crash’ de 1929 e a Grande Depressão
- Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
- Guerra Fria (1947-1991)
- Atentados de 11 de setembro de 2001
- Crise financeira global de 2008
E quais aprendizados à humanidade essas crises trouxeram? Quais dessas lições estão sendo usadas nesta pandemia? Quais avanços podem ser obtidos quando o novo coronavírus passar? Estamos mais ou menos preparados para lidar com choques globais?
Para responder a essas perguntas, o G1 conversou com cinco professores de instituições brasileiras e internacionais. Na visão dos especialistas, os maiores aprendizados das crises estão nas seguintes áreas:
- Política — Grandes crises aumentam o senso de coletividade, que podem reforçar as instituições democráticas ou, por outro lado, favorecer líderes autoritários.
- Economia — Choques econômicos fortaleceram mecanismos de proteção aos bancos e produziram algum grau de regulação do mercado por parte dos governos.
- Ciência e tecnologia — Guerras aceleraram a produção tecnológica, enquanto grandes epidemias colocam em evidência a questão do acesso à saúde e do desenvolvimento de medicamentos e vacinas.
- Segurança — As pessoas, até certo ponto, toleram mais medidas de vigilância como controles em aeroportos.
Saiba mais sobre os aprendizados nas crises abaixo:
Política
Os principais ganhos na área política após as primeiras crises do século XX estão na consolidação das instituições nacionais e internacionais, segundo os professores ouvidos pelo G1. Para os especialistas, isso é uma consequência do aumento do senso de coletividade depois dos grandes choques mundiais.
Bruno Leal, professor de história contemporânea da Universidade de Brasília (UnB), cita as iniciativas de cooperação internacional que surgiram após a Segunda Guerra Mundial, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Europeia.
“O fim da guerra é marcado pela cooperação entre os estados. Afinal, você precisa criar organismos que protegem o mundo de uma catástrofe geopolítica”, ilustra Leal.
Na mesma linha, o professor de relações internacionais do Ibmec-SP Marcelo Suano explica que essas organizações e alianças dependem de credibilidade internacional para mediar coletivamente os conflitos gerados pelas crises.
“As instituições não têm o papel de governar o mundo, mas orientar saídas e abrir debates para as crises que surgirem”, afirma Suano.
Os especialistas ponderam que o senso de coletividade gerado durante as catástrofes poderia levar ao aumento do autoritarismo — e, por isso mesmo, é importante que instituições sejam mais confiáveis para resolver as crises.
Para o professor Olivier Borraz, diretor do Centro de Sociologia das Organizações do instituto Sciences Po de Paris (França), é preciso relembrar os erros do passado para evitar novas tragédias humanitárias causadas pelo autoritarismo.
“Temos que evitar fazer o que levou a Europa a buscar o nazifascismo no período entre guerras. Não podemos correr o risco de novos conflitos”, diz Borraz.
Economia
As principais crises econômicas globais dos últimos 100 anos geraram uma série de regulações na economia de mercado, segundo os professores. Eles explicam que as medidas evitam que mais pessoas sofram as consequências caso novos choques financeiros ocorram.
“A Crise de 1929 ensinou como regular o capitalismo para que ele mesmo tenha condições de sobreviver. Era preciso criar regras de valores mobiliários para o sistema não sofrer outro choque”, exemplifica Marcelo Suano, do Ibmec-SP.
O professor Leonardo Weller, especialista em história econômica da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que a Crise de 1929 ensinou lições ao mundo financeiro para evitar que a Crise de 2008 tivesse consequências muito piores.
Na Crise de 1929, a bolsa de Nova York sofreu tombo de um terço apenas em um dia, o que desencadeou uma série de quebras no sistema bancário até a disparada do desemprego na década seguinte — período conhecido como a Grande Depressão. Em 2008, a quebra do banco Lehman Brothers e a crise das hipotecas também causaram forte recessão nos EUA, mas os efeitos não foram tão graves como 80 anos antes.
“Naquele ano, diferentemente de décadas atrás, o governo dos EUA não deixou os bancos falirem. Dos maiores bancos, só o Lehman Brothers faliu”, cita.
Novamente, porém, os professores alertam para o risco de a ação do estado extrapolar e criar raízes no autoritarismo. Bruno Leal, da UnB, relembra o panorama político da década de 1930, logo depois da Crise de 1929:
“Tem o caso dos EUA, que adotaram um estado interventor baseado em obras públicas para construir um sistema de geração de empregos dentro da democracia. Mas na Europa houve uma epidemia de governos autoritários, que também dão respostas para a crise, mas com um estado autoritário”.
Ciência e Tecnologia
Da construção de aviões ao desenvolvimento de sistemas eletrônicos, os conflitos aceleraram inovações no último século. Mesmo na Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética competiram pela primazia no setor aerospacial em um momento em que a ciência desbravava o espaço.
Os especialistas ouvidos pelo G1 explicam que, diferentemente dos demais colapsos, a pandemia de Covid-19 é uma crise sanitária que gerou efeitos políticos e econômicos — e não o contrário. A professora Maria Luiza Tucci Carneiro, especialista em história social da Universidade de São Paulo (USP), ilustra o papel da ciência nesse cenário.
“Na guerra, a ciência pode ser assassina — no Holocausto, inocentes foram assassinados sob esse pretexto. Agora, em uma pandemia, a ciência salva vidas”, compara Tucci.
Assim, outras epidemias ensinaram lições sobre o sistema sanitário: da importância do tratamento de esgoto adequado ao desenvolvimento de vacinas ou testes com medicamentos. Mesmo os surtos de SARS e MERS, outros coronavírus que provocam doenças respiratórias, deram a base para algumas das pesquisas sobre a Covid-19.
A professora Tucci explica que, nesses casos, o medo da própria morte ou da perda de uma pessoa querida geram aprendizados para crises do tipo. “Isso vem de um despreparo que nós temos diante de uma morte não esperada”, diz.
“São momentos recorrentes que nos trazem não só ensinamento, mas alertas que explicam nossos medos, o medo da morte em massa”, conclui.
Segurança
Após os atentados de 11 de setembro de 2001, passageiros encontraram regras mais rígidas nos aeroportos — a vigilância já existente ficou ainda mais intensa, com novas tecnologias para detectar explosivos, por exemplo.
Grandes choques do tipo aumentaram a tolerância das pessoas para certos tipos de vigilância, explicam os especialistas. A professora Maria Luiza Tucci, da USP, comenta que a falta de proteção leva ao medo que abre caminho para essas medidas.
“Você teve ali na época um inimigo exposto, o terrorismo. O que mudou? O medo de multidões e a desconfiança, sobretudo nos países mais atingidos”, explica.
Com a pandemia, o cenário quando a taxa de contágio for controlada pode levar a um maior monitoramento das condições de saúde antes de embarcar em um avião, por exemplo. Ou, em caso de um novo surto, rastreamento dos contatos para evitar que o patógeno volte a espalhar.
O mundo está mais preparado para lidar com crises?
As dificuldades do século passado trouxeram uma gama de avanços e aprendizados à humanidade, hoje mais preparada para lidar com uma crise como a pandemia do novo coronavírus. Porém, na opinião de professores ouvidos pelo G1, nem todas as lições vêm sendo aplicadas.
“Essa pandemia pegou a gente em um surto de populismo obscurantista que nega e não acredita nos avanços que obtivemos no último século”, opina o professor Leonardo Weller, da FGV.
Para Marcelo Suano, professor do Ibmec, as sociedades aprendem com grandes crises — o que não impede que os mesmos erros sejam cometidos em outras épocas.
“Diante do abismo, o ser humano aprende a sobreviver e a respeitar. Mas a história também mostra que a humanidade repete os mesmos erros de postura por arrogância”, diz.
Bruno Leal, professor da UnB, um desses caminhos errados tomados após uma crise ocorreu no período que antecedeu a Segunda Guerra. Depois da Primeira, acreditava-se que o fim do conflito levaria a um período de paz.
“Catástrofes nem sempre nos fazem melhores. Podemos sim melhorar o mundo, mas isso depende mais dos movimentos que acontecem todos os dias. Na pandemia, houve pessoas trocando tapas por causa de papel higiênico. Mas tem também pesquisadores sem bolsa indo às universidades para produzir”, cita.
Na mesma linha, Olivier Borraz, da Sciences Po de Paris, diz que o novo coronavírus tem mostrado as fissuras que já existiam nos países mesmo antes de a Covid-19 se espalhar pelo mundo.
“As vítimas dos vírus não são apenas os doentes. A pandemia vai revelar muitas dessas patologias e paradoxos da sociedade”, afirma Borraz.
Por isso, para a professora Maria Luiza Tucci, da USP, é preciso retomar a história para evitar a repetição de erros do passado. “São momentos que nos trazem não só um ensinamento, mas um alerta que explica nossos medos”, diz.
“E é esse o papel da história e da memória: retomar a experiência de hoje para que sirva como luz diante das próximas crises”, conclui Tucci.
Fonte: G1.