Com o Talibã no governo há pouco mais de quatro meses, o Afeganistão chega a 2022 enfrentando uma grave crise financeira, com a fome assolando uma enorme parcela de sua população, acusações de execuções e desrespeito às promessas de melhor tratamento às mulheres, além de ameaças de conflitos com o Estado Islâmico.
Ao mesmo tempo, o novo governo se empenha em reconstruir relações internacionais e apela pelo fim das sanções dos EUA e de outros países.
“Tornar o Afeganistão instável ou ter um governo afegão fraco não é do interesse de ninguém”, disse o ministro das Relações Exteriores afegão, Amir Khan Muttaqi, à Associated Press, em 13 de dezembro.
Em algumas regiões do país, a situação é tão dramática que famílias chegam até a vender seus filhos para sobreviver. Mohammad Ibrahim, um residente de Cabul, por exemplo, disse à Deutsche Welle que, sem outra opção para quitar um débito que a família tinha e ter a casa queimada, aceitou negociar a filha de 7 anos.
Mulheres
Ao assumir o poder, o Talibã prometeu que desta vez o tratamento dado às mulheres seria menos rígido do que da outra vez que governou o país, entre 1996 e 2001, quando elas foram impedidas de trabalhar e estudar e eram obrigadas a usar burcas que cobriam completamente seus corpos, da cabeça aos pés. Também havia apedrejamento de mulheres acusadas de adultério.
Um porta-voz do grupo chegou a conceder uma entrevista a uma jornalista que não usava burca, na qual afirmou que as mulheres poderiam trabalhar. Ainda em agosto, o Talibã também anunciou que elas poderiam estudar em universidades, mas longe dos homens – aulas mistas seriam proibidas, assim como nas escolas primárias e secundárias.
Na prática, porém, o discurso não se concretizou. O grupo determinou que todas as mulheres, exceto as do setor público de saúde, se afastassem do trabalho até que a “segurança do país” melhorasse.
O novo governo substituiu ainda o Ministério dos Assuntos da Mulher pelo Ministério da Virtude, o mesmo departamento responsável, até o início dos anos 2000, por enviar a polícia religiosa às ruas para fazer cumprir uma interpretação radical da lei Sharia (lei islâmica).
Duas afegãs que falaram ao g1 relataram as barreiras encontradas para voltar às escolas. Uma diretora de uma escola em Cabul afirmou que membros do Talibã estavam indo à porta do local e faziam muitas perguntas, intimidando funcionárias e estudantes. A outra disse ter medo de sair às ruas e de mandar sua filha para as aulas.
Algumas meninas recorrem a aulas clandestinas para continuar a aprender, já que, segundo reportagem da Deutsche Welle, em algumas cidades, as garotas não podem frequentar a escola depois da sexta série e, em algumas áreas, as meninas mais velhas não podem sentar-se com alunos do sexo masculino.
A BBC ouviu professoras e meninas de 13 províncias, e em todas elas as aulas para jovens do sexo feminino estão suspensas, apesar das promessas do Talibã de que não seriam interrompidas.
As autoridades evitaram anteriormente confirmar que se tratava de uma proibição total. No entanto, em uma entrevista à BBC, o vice-ministro da Educação em exercício, Abdul Hakim Hemat, confirmou que as meninas não teriam permissão para frequentar a escola secundária até que uma nova política educacional fosse aprovada no ano novo.
Em novembro, o governo anunciou que jornalistas e âncoras de telejornais só poderão continuar no ar se usarem um hijab – espécie de lenço islâmico cobrindo a cabeça. Já filmes e dramas televisivos com mulheres no elenco não podem mais ser exibidos nas emissoras de TV afegãs.
O mais recente anúncio feito pelo Talibã em relação às mulheres, no início de dezembro, finalmente pareceu ser positivo: o governo publicou um decreto afirmando que “Uma mulher não é uma propriedade, mas um ser humano nobre e livre; ninguém pode dá-la a ninguém em troca de paz… ou para por fim à animosidade”.
Na prática, isso significa que uma mulher precisa consentir para se casar, que ela não pode ser obrigada a fazê-lo. Além disso, viúvas devem ter sua parcela da herança do falecido marido.
A questão, a essa altura, é saber se esta será mais uma promessa quebrada pelo regime.
Fuga
Um dos líderes culturais do Talibã, Ahmadullah Wasiq, disse em uma entrevista a uma rede de TV da Austrália, a SBS, em agosto, que o esporte feminino é “algo inapropriado e desnecessário”.
Assim como artistas, muitas atletas deixaram o país, especialmente após a terrível morte da jogadora Mahjabin Hakimi, da seleção júnior de vôlei feminino, decapitada por extremistas.
A seleção feminina de futebol, por exemplo, criada em 2007, conseguiu sair do Afeganistão, acompanhada de seus familiares, com o apoio do governo da Austrália.
Outra categoria de mulheres extremamente ameaçada foram juízas. Além de enfrentar os riscos dos membros do Talibã, elas também corriam perigo porque muitos dos homens que condenaram por crimes graves foram libertados quando o grupo avançava pelo país, abrindo prisões e deixando prisioneiros escaparem.
Centenas delas se esconderam e dependeram de ajuda internacional para conseguir deixar o país.
Sete delas vieram ao Brasil, com vistos humanitários, acompanhadas de 14 parentes. Para chegar aqui, passaram pela Grécia, depois de deixar absolutamente tudo o que tinham para trás.
Como se não bastassem as imposições do governo talibã, a população ainda precisa lidar com a ameaça constante de outro grupo extremista, o Estado Islâmico-Khorasan (EI-K).
O EI-K reivindicou alguns dos ataques mais violentos dos últimos anos no Afeganistão e no Paquistão.
O grupo massacrou civis nos dois países em mesquitas, santuários, praças e até hospitais, além de ter executado ataques contra muçulmanos de alas que considera hereges – em particular os xiitas.
Em agosto de 2019, o EI-K reivindicou a autoria de um atentado contra os xiitas durante um casamento em Cabul que deixou 91 mortos.
As autoridades suspeitam que o grupo foi o responsável por um ataque, em maio de 2020, que chocou o mundo. Homens armados abriram fogo na maternidade de um bairro de maioria xiita de Cabul. Nele, 25 pessoas morreram, entre elas 16 mães e recém-nascidos.
O grupo também reivindicou o ataque próximo ao aeroporto de Cabul durante a retirada americana em agosto deste ano, que deixou dezenas de mortos, entre civis afegãos e militares dos EUA.
Nas províncias em que está presente, o EI-K deixou marcas profundas. Seus homens mataram a tiros, decapitaram, torturaram e aterrorizaram os moradores, deixando minas por todos os lados.
Além dos bombardeios e massacres, o EI-Khorasan não conseguiu controlar nenhum território na região e sofreu grandes perdas nas operações militares talibãs e americanas.
Embora os dois grupos sejam militantes islâmicos sunitas de linha dura, também são rivais e divergem em temas de religião e estratégia. Cada um diz representar a verdadeira bandeira da Jihad.
As divergências provocaram confrontos sangrentos, dos quais os talibãs geralmente saíram vitoriosos desde 2019, quando o EI-Khorasan foi incapaz de controlar um território como fez seu grupo parente no Oriente Médio.
Em um sinal de inimizade entre os grupos jihadistas, os comunicados do EI se referem aos talibãs como apóstatas.
Fonte: G1.