Uma onda de casos de hepatite em crianças tem preocupado as autoridades sanitárias da Europa e dos Estados Unidos. Dezenas de crianças foram diagnosticadas em cinco países com quadros agudos da doença desde o início de abril. A causa ainda é um mistério: nenhum dos cinco vírus de hepatite conhecidos foi encontrado nos exames de sangue.
“Muito estranho”, “extremamente surpreendente” ou “incomum e preocupante”. Estas são as palavras usadas por virologistas e pediatras entrevistados sobre o aparecimento, há quase um mês, de casos de inflamação no fígado de crianças pequenas que, em certos pacientes, levaram à necessidade de um transplante de fígado.
As primeiras infecções ocorreram no início de abril na Escócia. Na sequência, outras crianças foram diagnosticadas em outros locais do Reino Unido. No total, foram registrados cerca de 80 pacientes, com idade entre 22 meses e 13 anos, de acordo com a Agência de Saúde e Segurança do Reino Unido.
Desde então, outros casos de hepatite infantil foram relatados na Espanha, na Dinamarca e na Holanda, conforme informou o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças. Nos Estados Unidos, ao menos nove crianças doentes estão sendo tratadas no estado do Alabama.
Até o momento, os especialistas não sabem qual seria a causa dos casos de hepatite infantil. Os exames não identificaram a presença de nenhum dos vírus de hepatite conhecidos, de A a E.
Hepatite aguda muito rara em crianças
O número de infecções parece pequeno, mas foi o suficiente para alarmar a OMS (Organização Mundial da Saúde). A organização lançou um alerta para que outros países fiquem atentos a casos similares, o que pode levar ao aumento do número de pacientes nos “próximos dias”.
A gravidade dos casos é o que tem chamado a atenção dos especialistas. “A hepatite é uma condição bastante rara em crianças e estes são casos agudos, o que é ainda mais raro”, disse Will Irving, virologista da Universidade de Nottingham.
Frequentemente, a hepatite é causada por práticas muito distantes do mundo infantil, como o consumo excessivo de álcool, a transmissão sexual, ou o compartilhamento de agulhas no uso de drogas. Além disso, a doença tem muitas vezes sintomas leves, como febre, diarreia, dores no estômago e pele amarelada.
No entanto, nos casos diagnosticados nesta onda “quase todas as crianças tinham fígados muito danificados”, diz Will Irving.
Em ao menos seis casos, as crianças tiveram de se submeter a um transplante de fígado, situação muito rara, destaca Graham Cooke, especialista em doenças infecciosas do Imperial College London.
Essa hepatite tem uma causa, por enquanto, tratada como “misteriosa”, já que nenhum dos vírus conhecidos da hepatite foi encontrado nos exames dos pacientes.
Além disso, também não foram identificados fatores ambientais comuns que pudessem explicar a doença, como o consumo de alimentos contaminados ou a exposição a certas substâncias tóxicas.
A distribuição geográfica dos pacientes, nos dois lados do Atlântico, reduz ainda mais as chances de encontrar uma explicação ligada a um fator local.
Elo improvável com a Covid-19
Devido à pandemia, os especialistas estudam a hipótese de uma relação com o vírus da Covid-19. “Poderia ser um efeito ainda desconhecido da última variante ômicron, ou só agora estamos percebendo, após dois anos, que a Covid-19 pode causar hepatite em algumas crianças”, resume Alastair Sutcliffe, pesquisador em pediatria da University College of London.
No entanto, os especialistas estão céticos quanto a essa possibilidade. Primeiramente, porque várias das crianças afetadas não tiveram Covid-19 ao mesmo tempo. Em segundo lugar, se fosse um sintoma ainda desconhecido da Covid-19, “provavelmente teria havido muito mais casos de hepatite, dada a velocidade de propagação do SARS-CoV-2”, diz Will Irving.
As autoridades sanitárias britânicas até investigaram se isso poderia ser um efeito coletaral da vacina anticovid, mas nenhuma das crianças havia sido imunizada. “Esta talvez seja a única boa notícia nesta história”, observa Alastair Sutcliffe.
Um adenovírus ou um novo vírus
Em contrapartida, um adenovírus está no radar dos cientistas como possível suspeito: o AD-41. O vírus é parte uma grande família responsável na maioria das vezes por sintomas muito leves, como resfriados ou fadiga. “Ele é conhecido por causar gastroenterite em crianças, mas que nunca foi associado a um risco de hepatite”, observa Will Irving.
A presença deste adenovírus foi detectada em várias crianças que tiveram a hepatite “misteriosa” no Reino Unido e “sabemos que atualmente há um aumento acentuado de infecções com este adenovírus na população do Reino Unido”, reconhece Graham Cooke.
“É bastante assustador pensar que a contenção e posterior relaxamento das medidas sanitárias [que permitiram a propagação do adenovírus] pode ter levado à descoberta de uma nova causa de hepatite”, observa Alastair Sutcliffe.
No entanto, o AD-41 não foi encontrado no corpo de todos os jovens diagnosticados. “Isto não refuta necessariamente a tese de uma ligação entre este adenovírus e os casos de hepatite –podemos não ter procurado no lugar certo– mas enfraquece a hipótese”, reconhece Cooke.
Estaríamos então diante de um novo vírus? “Isso seria extraordinário, já que ainda estamos em um contexto pandêmico ligado a um novo vírus”, diz Alastair Sutcliffe.
Esta última hipótese seria a mais fácil de ser testada. “Temos técnicas avançadas para identificar a presença de DNA ou RNA estranho – o que sugere a existência de um vírus – em tecidos retirados, neste caso, de pedaços do fígado de crianças infectadas”, resume Will Irving.
Contudo, se for necessário investigar se todas essas crianças foram expostas à mesma toxina ou a um alimento contaminado, os especialistas terão muito mais dificuldades para nos dar a resposta sobre o que provoca a hepatite.
Fonte: RFI.