Quase mil pessoas foram mortas pela dengue no Brasil neste ano. Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil destacam que maior ênfase ao combate à COVID-19 e volume atípico de chuvas contribuíram para o avanço da doença no país e o número recorde de mortes.
O ano de 2022 se encerra como o mais mortal para a dengue no país. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde revelam que a doença ceifou 987 vidas entre 2 de janeiro e o último dia 17, número muito superior aos 246 óbitos registrados em 2021 e também superior ao recorde anterior, de 2015, quando 986 mortes foram computadas. A marca pode subir, uma vez que outros 98 óbitos seguem em investigação.
Neste ano, foram registrados 1.414.797 casos prováveis de dengue (taxa de incidência de 663,2 casos por 100 mil hab.) no país, o que representa uma alta de 163,8% na comparação com 2021.
De acordo com o ministério, os estados que apresentaram a maior quantidade de mortes pela doença foram: São Paulo (275), Goiás (153), Paraná (108), Santa Catarina (88) e Rio Grande do Sul (66).
Em entrevista à Sputnik Brasil, André Ricardo Araújo, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) especializado em prevenção e controle de doenças infecciosas, e Leonardo Bastos, pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explicam que o salto no número de casos é fruto de uma conjunção de fatores, que envolve variações climáticas, imunidade populacional e políticas públicas de enfrentamento da doença.
Leonardo Bastos destaca que o volume atípico de chuvas registrado no Brasil em 2022 pode ter contribuído para o salto no número de casos. Isso porque ampliou a área do país em que o mosquito Aedes aegypti, vetor da doença, encontra condições favoráveis para se reproduzir.
“Chuva e temperatura afetam diretamente o ciclo de vida dos mosquitos. Os ovos dos mosquitos precisam de água para eclodir, e a sobrevida do mosquito depende de uma temperatura não muito baixa e nem muito alta, entre 20 °C e 30 °C é ideal para o mosquito. E em um cenário de mudanças climáticas, regiões como partes do Sul do Brasil, que não estavam acostumadas com surtos e epidemias de dengue, passaram a ter recentemente.”
Ele acrescenta que “regiões que não tinham epidemias de dengue antes têm uma população maior de pessoas suscetíveis à doença e os surtos tendem a ser grandes”. Segundo ele, isso se explica, em parte, pela imunidade adquirida por populações que, por conta de histórico de surtos, adquiriram imunidade a algum dos quatro sorotipos da doença.
“Isso poderia explicar os números mais altos deste ano, uma vez que vimos epidemias em regiões que não estavam habituadas com dengue, como a região Sul. Ao passo que algumas regiões que enfrentam epidemias com certa regularidade tiveram relativamente poucos casos, é o caso do Rio de Janeiro”, diz Bastos.
André Ricardo Araújo, por sua vez, aponta para o maior foco dado ao combate da pandemia da COVID-19. Araújo reconhece a necessidade de combater o novo coronavírus, mas ressalta que, com a pandemia, a ênfase maior foi dada ao combate à COVID-19, negligenciando outros problemas.
Segundo ele, os protocolos de prevenção, identificação precoce de casos e manejo da doença, para que ela não gere óbito, foram suspensos por conta da pandemia. Somado a isso, está a redução de recursos direcionados ao combate à dengue.
“Boa parte dos recursos financeiros foi direcionada para o combate a essa infecção [COVID-19], em detrimento de uma endemia, que é a dengue. Com isso, as campanhas de prevenção e esclarecimento ficaram aquém do que a gente gostaria. Com certeza isso foi um impacto.”
Bastos concorda que a COVID-19 impactou no cenário da dengue, mas destaca que de forma diferente a cada ano, desde o início da pandemia.
“No início na pandemia, houve uma grande restrição da mobilidade, e isso, de certa forma, reduz a transmissão da dengue pois o vírus ‘anda’ de um lugar para outro através dos humanos infectados. Os mosquitos infectados não viajam longas distâncias. Essa redução da mobilidade em 2020 aconteceu justamente no momento de alta atividade de dengue no país. Já em 2021, tivemos uma grande onda associada à variante Gama, e nesse período a mobilidade não estava tão restrita, mas os hospitais cheios e as pessoas em alerta, assumindo que febre era mais provável de ser COVID-19 do que dengue. Logo, é possível que a COVID-19 tenha causado subnotificação de casos de dengue. Mesmo assim, epidemias de dengue aconteceram tanto em 2020 quanto em 2021.”
Ele acrescenta que, “em 2022, a pandemia da COVID-19 passou por um momento diferente”. “Muitas infecções com a Ômicron, porém com a vacinação reduzindo potenciais hospitalizações. E nesse cenário vimos um aumento expressivo de casos e óbitos de dengue”, explica Bastos.
O Brasil pode erradicar novamente a dengue?
A dengue já foi uma doença erradicada no Brasil na década de 1950, porém voltou a registrar casos a partir da década seguinte, e se tornou uma doença endêmica depois.
Atualmente, há apenas uma vacina aprovada para uso contra a dengue, a Dengvaxia, fabricada pelo laboratório francês Sanofi Pasteur. No entanto, o uso da vacina ainda é restrito e não é recomendado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para pessoas que nunca tiveram contato com o vírus da dengue. Isso ocorre por conta de um efeito colateral da vacina, que pode levar pessoas que nunca tiveram contato com o vírus a contrair a forma mais grave da doença após receber o imunizante.
Estudos recentes, como um publicado neste ano pela revista científica The Lancet, apontam que, para evitar esse efeito colateral, a vacina da dengue deve ser tetravalente, ou seja, proteger contra os quatro sorotipos da doença (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4).
Mas não é apenas a falta da vacina que dificulta o combate à dengue. Bastos explica que seria muito difícil alcançar novamente a erradicação da doença, uma vez que as condições favoráveis a isso não existem mais.
“A principal forma de enfrentamento da dengue, ou outras doenças transmitidas por mosquito, é o combate do vetor. O Aedes aegypti não é nativo do Brasil, então quando ele foi introduzido no país os métodos de controle eram mais eficientes, pois além dos mosquitos estarem em menor número ainda não eram resistentes a inseticidas como são os mosquitos atuais. Hoje, o enfrentamento é mais difícil, pois o mosquito está mais resistente e está se estabelecendo em regiões onde não havia mosquitos antes.”
Araújo compartilha da opinião, e afirma que o clima no Brasil favorece o mosquito vetor da doença. “O Brasil é um país imenso, a maior parte dele é tropical, úmida. Com o aumento da população, a chance de ter cada vez mais criadouros do mosquito Aedes aegypti é muito grande.”
Por conta disso, ele destaca que o combate à dengue deve ter uma “estratégia multimodal”. “Não dá para ficar só combatendo a dengue com a eliminação do mosquito, a gente precisa também ter outras estratégias que sejam igualmente eficazes. E na eventualidade de a pessoa adquirir a infecção, ser prontamente tratada e diagnosticada de forma adequada, de forma a minimizar os casos fatais que evoluem para uma situação mais crítica de internação, e que, em última análise, levam ao óbito do paciente”, destaca Araújo.
Ele acrescenta que, entre as ações multimodais de combate à dengue, estão “algumas estratégias biológicas para inibir a proliferação do mosquito, como o uso de outros insetos para comer as larvas do Aedes aegypti”.
“Existem algumas alternativas biológicas, investimento em vacinas contra a dengue. Tem uma série de alternativas que são multimodais, e incluem também a capacitação das equipes médicas para poder atuar na identificação e manejo precoce dos casos”, diz Araújo.
Bastos finaliza destacando que, para reverter o avanço da dengue no país, o “próximo governo deve se pautar na ciência, investindo em métodos mais eficientes de controle vetor”.
“Métodos que dificultem os mosquitos a transmitir o vírus para o humano, investir em vigilância epidemiológica, vigilância genômica, desenvolvimento e avaliação de vacinas contra dengue, e de tratamentos que evitem o agravamento”, conclui Bastos.