Com as mudanças climáticas provocando devastações pelo mundo e o temor de que Vladimir Putin use armas nucleares na guerra com a Ucrânia, era de se esperar que o ponteiro do Relógio do Apocalipse (Doomsday Clock, na sigla em inglês) avançasse este ano em direção à meia-noite, símbolo da hora do Juízo final, e foi o que aconteceu.
Nesta terça-feira (23), o painel de cientistas que desde 1947 anos utiliza a metáfora do tempo que falta para o fim do mundo como forma de alertar para riscos nucelares, ambientais e de tecnologias disruptivas revelou que em uma conferência de imprensa em Washignton (EUA) que o mundo está a 90 segundos da meia-noite do Armagedon, o pont0 mais próximo em que já esteve.
O motivo para o avanço foi em grande parte (embora não exclusivamente, como ressaltou o relatório) foi o crescente perigo oferecido pela guerra na Ucrânia.
” A guerra pode entrar em um segundo ano horrível, com ambos os lados convencidos de que podem vencer. A soberania da Ucrânia e os acordos de segurança europeus mais amplos que se mantiveram em grande parte desde o fim da Segunda Guerra Mundial estão em jogo.
Além disso, a guerra da Rússia contra a Ucrânia levantou questões profundas sobre como os Estados interagem, corroendo as normas de conduta internacional que sustentam respostas bem-sucedidas a uma variedade de riscos globais.”
Essa foi a principal preocupação destacada pelos cientistas para justificar o avanço do ponteiro em 2023, anunciado em uma conferência para a imprensa realizada no Press Club de Chicago.
Essa foi a principal preocupação destacada pelos cientistas para justificar o avanço do ponteiro em 2023, anunciado em uma conferência para a imprensa realizada no Press Club de Chicago.
Segundo o painel do Relógio do Apocalipse, os efeitos da Guerra Rússia-Ucrânia não se limitam a um aumento no perigo nuclear; eles também prejudicam os esforços globais para combater as mudanças climáticas.
Os países dependentes do petróleo e do gás russos procuraram diversificar seus suprimentos e fornecedores, levando à expansão do investimento em gás natural exatamente quando esse investimento deveria ter diminuído.
As emissões globais de dióxido de carbono da queima de combustíveis fósseis, depois de terem se recuperado do declínio econômico resultante da Covid-19 para um máximo histórico em 2021, continuaram a subir em 2022 e atingir outro recorde.”
O relatório destaca que não apenas os eventos climáticos extremos continuaram a atormentar diversas partes do globo, mas foram mais evidentemente atribuíveis às mudanças climáticas.
Países da África Ocidental experimentaram inundações que estavam entre as mais letais em suas histórias, devido a um evento de precipitação que foi avaliado como 80 vezes mais provável por causa das mudanças climáticas.
As temperaturas extremas na Europa Central, América do Norte, China e outras regiões do Hemisfério Norte no verão passado levaram à escassez de água e a condições de seca do solo que, por sua vez, levaram a colheitas ruins, minando ainda mais a segurança alimentar em um momento em que o conflito da Ucrânia já impulsionava o aumento dos preços dos alimentos.
As ameaças biológicas também foram levadas em conta para a marcação da nova hora, como explicaram os cientistas:
Eventos devastadores como a pandemia de COVID-19 não podem mais ser considerados ocorrências raras, uma vez por século.
O número total e a diversidade de surtos de doenças infecciosas aumentaram significativamente desde 1980, com mais da metade delas causadas por doenças zoonóticas (ou seja, doenças originárias de animais e transmitidas aos seres humanos). Como tal, as zoonoses colocam a população humana em risco significativo de pandemias.
Acidentes de laboratório continuam a ocorrer com frequência. Oportunidades de erro humano, compreensão limitada das características de novas doenças, falta de conhecimento de governos locais sobre os tipos de pesquisa que ocorrem em laboratórios em suas jurisdições e confusão sobre os requisitos de segurança do laboratório desafiam os atuais programas de biossegurança.
O risco biológico também envolve a Rússia. Os cientistas apontaram que eventos recentes—”incluindo especialmente a invasão russa da Ucrânia e seus contínuos esforços de desinformação em relação a armas biológicas”— mudaram o cenário.
O risco de que a Rússia se envolva em guerra biológica aumenta à medida que as condições na Ucrânia se tornam mais caóticas, enfraquecendo as normas de guerra.
A escalada da guerra na Ucrânia representa muitas ameaças potencialmente existenciais à humanidade; uma delas é biológica.
No que diz respeito à desinformação, os cientistas demonstraram algum otimismo com o fato de o negacionismo eleitoral ter perdido força em países como EUA e França.
Por outro lado, salientaram, a “desinformação habilitada para a cibernética” continua inabalável. O estudo cita a oposição política a uma “Comissão de Governança de Desinformação” proposta pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA, e novamente riscos vindos da Rússia.
Dentro da Rússia, o controle do governo sobre o ecossistema de informações bloqueou a ampla disseminação de informações verdadeiras sobre a guerra da Ucrânia.
O Relógio do Apocalipse
O Doomsday Clock é uma das mais poderosas e eficientes campanhas de comunicação já criadas, que ocupa destaque na mídia global e faz com que o público leigo compreenda visualmente temas complexos tratados pelos cientistas em seus estudos e análises acadêmicas.
O relógio existe de verdade. Ele fica localizado no saguão do Keller Center, sede da Escola de Políticas Públicas Harris da Universidade de Chicago, de onde sai o relatório Bulletin of Atomic Scientists, uma análise produzida por cientistas de várias disciplinas que fundamenta a posição dos ponteiros.
O primeiro boletim tinha o físico Albert Einstein como um dos autores. Ele se concentra em três riscos: armas nucleares, mudança climática e tecnologias disruptivas.
Em, 2022, pela primeira vez a desinformação foi mencionada como uma das ameaças ao planeta, principalmente por causa da resistência às vacinas contra o coronavírus e incentivo a atos violentos como a invasão do Capitólio por apoiadores de Donald Trump adeptos de teorias conspiratórias.
A hora é revelada sempre em janeiro. Em 2022, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia ainda não tinha começado, mas os cientistas já listavam as tensões na região como um dos elementos para o risco nuclear.
As horas que o relógio já marcou
O tempo que falta para o Juízo Final simbólico começou a ser marcado como uma reação à ameaça nuclear, mas depois incorporou outros riscos para o planeta e para a humanidade.
O mais longe que o relógio chegou foi de 17 minutos para a meia-noite, em 1991, após o colapso da União Soviética e assinatura do Tratado de Redução de Armas Estratégicas
Até recentemente, o horário mais próximo da meia-noite era dois minutos, – primeiro em 1953, quando os EUA e a União Soviética testaram armas termonucleares, e depois em 2018. Nesse ano, os cientistas citaram “um colapso na ordem internacional” das potências nucleares, bem como a contínua falta de ação sobre a mudança climática.
Em 2020, os cientistas mudaram para 100 segundos para a meia-noite – o mais próximo que já esteve – onde permaneceu em 2021 e 2022. Agora, aproximou-se um pouco mais.
A história do Relógio do Apocalipse
A maioria das pessoas que faziam parte do Projeto Manhattan, a missão secreta do governo dos EUA que criou a primeira bomba atômica, não sabia o que estava construindo.
Mas os cientistas sabiam, e alguns deles tiveram dúvidas desde o início, explica a Universidade de Chicago.
Leo Szilard e Albert Einstein foram os dois físicos que escreveram ao presidente Franklin Roosevelt em 1939, alertando-o sobre o potencial de uma bomba atômica — e suas suspeitas de que a Alemanha poderia construir uma.
Seis anos depois, em junho de 1945, Szilard, juntamente com o prêmio Nobel James Franck e outros colegas cientistas do Projeto Manhattan, assinaram um documento de advertência conhecido como Relatório Franck, que enviaram ao secretário de guerra dos Estados Unidos.
Eles argumentaram que os Estados Unidos deveriam anunciar uma demonstração pública da arma em uma área desabitada e então usar a ameaça para pressionar o Japão a se render.
Quando a recomendação desse documento não foi acatada, eles circularam uma segunda petição contra o uso da arma, assinada por quase 70 colegas funcionários do Projeto Manhattan.
Depois bombas atômicas foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, Szilard e muitos outros cientistas do Projeto Manhattan se reuniram para discutir como informar o público sobre a ciência e suas implicações para a humanidade.
Em setembro, eles formaram o Bulletin of the Atomic Scientists de Chicago – mais tarde abreviado para Bulletin of the Atomic Scientists conforme o número de membros aumentava.
“Pela primeira vez na história moderna, os cientistas estavam dizendo que era necessário fazer julgamentos sobre o que fazer com suas invenções”, de acordo com John A. Simpson, um jovem cientista da Universidade de Chicago que trabalhou no Projeto Manhattan e serviu como o primeiro presidente do Boletim.
Por mais de 75 anos, o Boletim continuou como uma organização independente e sem fins lucrativos, publicando um site de acesso gratuito e uma revista bimestral. De acordo com seu site, sua missão é “reunir uma gama diversificada das vozes mais informadas e influentes que rastreiam ameaças feitas pelo homem” para informar o público.
O grupo de 18 especialistas, com diversas formações, desde política e diplomacia até história militar e ciência nuclear, se reúne duas vezes por ano para discutir eventos, políticas e tendências. Eles consultam amplamente seus colegas em uma variedade de disciplinas e também buscam as opiniões do Conselho do Boletim que inclui vários ganhadores do Prêmio Nobel.
Fonte: UOL.