O número de conflitos por água bateu recorde em 2022, puxado pela guerra na Ucrânia, ataques contra redes de abastecimento na Cisjordânia e pela violência entre fazendeiros e pastores em países da África Subsaariana.
Foram 228 incidentes em que a água foi gatilho, arma ou vítima de violência no ano passado, um aumento de 87% em relação a 2021.
Entre eles estão casos como:
- Ataques russos contra redes de abastecimento ucranianas, que impactaram o fornecimento de água em várias cidades. Mariupol, por exemplo, teve mais de 40% do sistema de abastecimento danificado. A região de Luhansk ficou totalmente sem água a partir de maio do ano passado. Já em Donetsk, o fornecimento ficou limitado a apenas 2 horas a cada três ou quatro dias.
- Destruição de poços e tanques de água, além de encanamento, por militares e colonos israelenses na Cisjordânia ao longo de 2022.
- Ataques contra canos e poços de água por grupos militantes em diferentes países da África Subsaariana, como Burkina Faso, Mali, Somália. Além de confrontos por acesso à água e à terra entre fazendeiros e pastores de camelo no Quênia.
Os números são do Pacific Institute, um instituto de pesquisa americano sem fins lucrativos que, desde os anos 1980, monitora conflitos relacionados à água, mantendo a maior base de dados aberta do mundo sobre o tema.
O levantamento é baseado em notícias publicas pela imprensa, bases de dados sobre conflitos e testemunhos oculares. São considerados conflitos por água casos em que foram registrados mortos ou feridos, manobras militares, demonstrações de força e ameaças verbais. Não são incluídos casos provocados por políticas públicas, como deslocamento de pessoas para a construção de barragens, ou que tenham consequências acidentais e não-intencionais, como eventos climáticos extremos.
Violência por água em alta
A cronologia mostra que a violência por água vem aumentando de forma mais intensa na última década, especialmente em anos mais recentes: desde 2018, com exceção de 2020 (ano da pandemia), todos os anos tiveram mais de 100 ocorrências contabilizadas — até então, o ano recorde havia sido 2017, com 87 disputas.
“Os dados mostram que houve um aumento significativo de ataques contra sistemas hídricos de civis durante conflitos, mas ainda há um grande número de eventos em que a escassez de água e disputas pelo acesso levaram à violência”, afirma, em entrevista ao g1, Peter Gleick, cofundador do instituto e integrante da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
“No primeiro caso, esses incidentes não são de competição por água, mas acontecem onde há guerras ou conflitos armados. Mas a crescente competição por água, com o aumento das secas, das mudanças climáticas, também está levando à violência onde o acesso à água não é universal”, explica ele.
O acesso a água e saneamento é considerado um direito humano pela Organização das Nações Unidas (ONU), sendo essencial para saúde, redução da pobreza, segurança alimentar, educação, manutenção da paz e de ecossistemas.
O professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) Wagner Costa Ribeiro, autor do livro “Geografia Política da Água” explica que a água é é vital não só para o corpo humano, mas também para os processos produtivos, como atividades agrícolas, industriais e, ainda, geração de energia.
Mesmo assim, cerca de 2,2 bilhões de pessoas não tinham acesso à água potável em 2022 e metade da população global já experiencia escassez severa de água pelo menos um mês por ano.
Para Peter Gleick, do Pacific Institute, o aumento de conflitos por água é um “indicativo das crescentes pressões sobre os recursos hídricos, conforme as mudanças climáticas e os eventos extremos pioram, a população cresce, e a água continua sendo administrada e usada de forma insustentável”.
Conflitos por água em tempos de guerra
Em imagem cedida pelo Serviço de Emergência da Ucrânia, trabalhadores reparam estrutura depois que, segundo autoridades ucranianas, um ataque de mísseis russos danificou barragem e estação de bombeamento de água em Kryvy Rih, no sudeste da Ucrânia, em setembro de 2022. — Foto: Ukrainian Emergency Service/AP
Guerras são um grande motor do aumento da violência por recursos hídricos, como mostra o número recorde de 2022.
Apenas no ano passado, a guerra na Ucrânia foi responsável por quase 20% de todos os conflitos envolvendo água registrados ao redor do mundo. Já no sudeste asiático, pelo menos 13 disputas foram relacionadas à guerra civil no Iêmen e outras 11 à guerra na Síria.
Este ano, com a continuidade dessas guerras e, ainda, com a ofensiva militar israelense em Gaza, a violência deve seguir alta. Somente entre janeiro e junho de 2023, o Pacific Institute já contabilizou117 ocorrências.
“Onde há guerras e conflitos armados por motivos políticos, econômicos, religiosos ou qualquer outra razão, nós vemos um aumento nos ataques contra sistemas hídricos civis. E isso pode acontecer em qualquer região”, explica Gleick.
A água é usada em guerras como um alvo estratégico há séculos – um dos primeiros registrados data de 596 a.C., durante o cerco de Tiro pelo rei babilônico Nabucodonosor. E, mesmo quando corpos e estruturas d´água não são o alvo, eles costumam estar entre as primeiras vítimas de conflitos armados.
É o caso, por exemplo, da imensa represa de Kakhovka, no rio Dnipro, destruída em junho deste ano. Na época, a Rússia e a Ucrânia trocaram acusações sobre a autoria do ataque, que levou a uma grande enchente, mais de 50 mortes, devastação ecológica e corte no abastecimento de cidades, usinas e sistemas de irrigação.
Apesar de o direito internacional proteger sistemas de água que abastecem populações humanas por meio de tratados como as Convenções de Genebra, estruturas hídricas continuam na mira durante conflitos armados. Muitas vezes, essas leis são simplesmente ignoradas e a comunidade internacional falha em garantir que elas sejam cumpridas.
“Eu poderia argumentar que precisamos de mais e melhores leis internacionais”, diz Gleick. “Mas, francamente, é tão importante quanto que as leis existentes sejam aplicadas e que as violações sejam processadas [judicialmente]”.
Onde a violência é pior
Nesta imagem de arquivo de 2021, crianças da vila de al-Mufagara, perto de Hebron, brincam em uma caixa d’água que substituiu a anterior, danificada em ataque de colonos israelenses na Cisjordânia. — Foto: Nasser Nasser/AP
Ainda assim, regiões em que predomina a escassez de recursos hídricos costumam registrar mais disputas. São lugares em que o acesso (ou não) à água é, muitas vezes, um gatilho para conflitos.
“Esses eventos são especialmente prevalentes no Oriente Médio, onde as populações são grandes e a água é limitada, e na África Subsaariana, onde grupos de fazendeiros e de pastores estão competindo cada vez mais por escassos recursos, tanto de terra quanto de água, e onde rios são compartilhados através de fronteiras, mas onde as instituições de partilha dos recursos hídricos são mais fracas”, diz o cofundador do Pacific Institute.
O mapa dos conflitos registrados no ano passado ilustra essa concentração de violência onde o acesso à água é pior:
- A região mais afetada foi o Sudoeste Asiático, que inclui os países do Oriente Médio, com 75 ocorrências (33% do total).
- Na sequência, está a África Subsaariana, com 44 conflitos.
- Já o sul da Ásia, outra região que sofre com escassez de água, somou 27 incidentes.
Segundo Ribeiro, da USP, o problema não é de falta de água doce no mundo. “Mas temos uma distribuição muito desigual. E grande questão é que a água precisa estar próxima de quem vai consumí-la ou usá-la”, explica o professor.
Segundo dados do World Resources Institute, as regiões de mais “estresse hídrico” (que mede a diferença entre oferta e demanda de água) são o Oriente Médio e o norte da África, onde 83% da população está exposta a “estresse hídrico extremamente alto”, e o sul da Ásia, com 74% da população.
Os cinco países em situação mais grave são Bahrein, Cyprus, Kuwait, Omã e Catar, todos no Oriente Médio. Já entre os países com risco considerado médio-baixo ou baixo estão Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Equador, Canadá, Rússia, Inglaterra.
Na América Latina, o Pacific Institute contabilizou 12 conflitos em 2022. Dois deles ocorreram no Brasil:
- Em março, moradores de Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte, e Serra, no Espírito Santo, protestaram contra a falta de água em seus bairros com bloqueio de rodovias e queima de objetos. Um manifestante foi ferido em Esmeraldas.
- Já em novembro, supostos manifestantes pró-Bolsonaro danificaram o sistema de abastecimento de Ariquemes, em Rondônia, quebrando canos de água e levando à falta de água em vários bairros.
Ribeiro lembra, ainda, que nem todo conflito em torno de fontes hídricas se dá em lugares de escassez: a abundância também pode causar conflitos relacionados ao uso que se quer fazer da água. Um exemplo é o caso da disputa entre Uruguai e Argentina. O primeiro queria fazer uma fábrica de papel, mas a Argentina se opunha por temer que seu rio fosse contaminado.
Fonte: G1.