“Ela não pôde dizer suas últimas palavras. Estava morta quando foi levada”, conta Hafiza calmamente, enquanto descreve como a mãe foi morta em uma cidade sitiada em Darfur, durante a guerra civil do Sudão, que começou há exatamente dois anos.
A jovem de 21 anos registrou como a vida da sua família virou do avesso com a morte da mãe, usando um dos vários telefones que o Serviço Mundial da BBC conseguiu entregar para pessoas que estavam sob o fogo cruzado em el-Fasher.
Sob bombardeio constante, el-Fasher está praticamente isolada do mundo exterior há um ano, impossibilitando a entrada de jornalistas na cidade. Por motivos de segurança, estamos publicando apenas os primeiros nomes das pessoas que quiseram filmar suas vidas e compartilhar suas histórias por meio dos telefones da BBC.
Hafiza narra como, de repente, se viu responsável pelo irmão de cinco anos e duas irmãs adolescentes.
O pai deles havia morrido antes do início da guerra, que colocou o Exército contra os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) — e causou a maior crise humanitária do mundo.
Os dois rivais haviam sido aliados — chegaram ao poder juntos por meio de um golpe —, mas se desentenderam por causa de um plano apoiado internacionalmente para avançar no sentido de um governo civil.
A casa de Hafiza fica na última grande cidade controlada pelos militares na região de Darfur, no oeste do Sudão, e tem estado sob cerco das RSF nos últimos 12 meses.
Em agosto de 2024, um projétil atingiu o mercado onde sua mãe tinha ido vender utensílios domésticos.
“O luto é muito difícil, ainda não consigo visitar o local de trabalho dela”, diz Hafiza em uma de suas primeiras mensagens de vídeo depois de receber o telefone, logo após a morte da mãe.
“Passo meu tempo chorando sozinha em casa.”
Ambos os lados do conflito foram acusados de crimes de guerra e de atacar deliberadamente civis — o que eles negam. As RSF também negaram anteriormente as acusações dos EUA e de grupos de direitos humanos de que teriam cometido um genocídio contra grupos não árabes em outras partes de Darfur depois de assumir o controle dessas áreas.
As RSF controlam a entrada e saída da cidade e, às vezes, permitem que os civis saiam, então Hafiza conseguiu enviar os irmãos para ficar com familiares em uma zona neutra.
Mas ela ficou para tentar ganhar dinheiro para sustentá-los.
Em suas mensagens, ela descreve seus dias distribuindo cobertores e água para pessoas desalojadas que vivem em abrigos, ajudando em uma cozinha comunitária e apoiando um grupo de conscientização sobre o câncer de mama em troca de um pouco de dinheiro para ajudá-la a sobreviver.
Ela passa as noites sozinha.
“Me lembro dos lugares em que minha mãe e meus irmãos costumavam sentar, e fico arrasada”, acrescenta.
Casas foram saqueadas
Em quase todos os vídeos que Mostafa, de 32 anos, nos enviou, o som de bombardeios e tiros pode ser ouvido ao fundo.
“Sofremos bombardeios implacáveis de artilharia, dia e noite, das RSF”, diz ele.
Um dia, depois de visitar a família, ele voltou e descobriu que sua casa, perto do centro da cidade, havia sido atingida por projéteis — o telhado e as paredes foram danificados —, e saqueadores levaram o que restava.
“Tudo estava virado de pernas para o ar. A maioria das casas do nosso bairro foi saqueada”, ele relata, culpando as RSF.
Enquanto Mostafa trabalhava como voluntário em um abrigo para pessoas desalojadas, a região foi alvo de um intenso ataque. Ele manteve a câmera gravando enquanto se escondia, com uma reação de sobressalto a cada explosão.
“Não há lugar seguro em el-Fasher”, diz ele. “Até mesmo os acampamentos de refugiados estão sendo bombardeados com projéteis de artilharia.”
“A morte pode atingir qualquer pessoa, a qualquer momento, sem aviso prévio… por meio de uma bala, de um bombardeio, da fome ou da sede.”
Em outra mensagem, ele fala sobre a falta de água limpa, descrevendo como as pessoas bebem de fontes contaminadas com esgoto.
Tanto Mostafa quanto Manahel, de 26 anos, que também recebeu um telefone da BBC, trabalhavam como voluntários em cozinhas comunitárias financiadas por doações de sudaneses que vivem em outros lugares.
A Organização das Nações Unidas (ONU) alertou sobre a fome na cidade, algo que já aconteceu no acampamento de Zamzam, nas proximidades, que abriga mais de 500 mil desalojados.
Muitas pessoas não conseguem ir ao mercado — “e se vão, se deparam com preços altos”, explica Manahel.
“Toda família é igual agora — não há ricos ou pobres. As pessoas não podem arcar com as necessidades básicas, como comida.”
Depois de preparar refeições como arroz e ensopado, eles entregam a comida para as pessoas em abrigos. Para muitos, esta é a única refeição que vão fazer no dia.
Quando a guerra começou, Manahel tinha acabado de terminar a universidade, onde estudou a Sharia (lei islâmica) e direito.
Quando os combates chegaram a el-Fasher, ela se mudou com a mãe e os seis irmãos para uma área mais segura, mais distante da linha de frente.
“Você perde sua casa, tudo o que tem, e se vê em um lugar novo sem nada”, diz ela.
Mas o pai dela se recusou a deixar a casa. Alguns vizinhos confiaram a ele seus pertences, e ele decidiu ficar para protegê-los — uma decisão que custou sua vida.
Ela afirma que ele foi morto pela artilharia das RSF em setembro de 2024.
Estupros e mortes
Desde o início do cerco, há um ano, quase 2 mil pessoas foram mortas ou feridas em el-Fasher, de acordo com a ONU.
Após o pôr do sol, as pessoas raramente saem de casa. A falta de eletricidade pode tornar a noite assustadora para muitos dos um milhão de habitantes de el-Fasher.
As pessoas que têm energia solar ou baterias têm medo de acender as luzes porque “podem ser detectadas por drones”, explica Manahel.
Houve ocasiões em que não conseguimos entrar em contato com ela ou com os outros por vários dias porque eles não tinham acesso à internet.
Mas, acima de todas estas preocupações, há um medo específico que tanto Manahel quanto Hafiza compartilham se a cidade cair nas mãos das RSF.
“Como mulher, posso ser estuprada”, diz Hafiza em uma de suas mensagens.
Ela, Manahel e Mostafa são todos de comunidades não árabes, e seu temor tem origem no que aconteceu em outras cidades que as RSF tomaram, principalmente em el-Geneina, a 400 quilômetros a oeste de el-Fasher.
Em 2023, o país testemunhou massacres horríveis, por motivos étnicos, que os EUA e outros países consideram genocídio. Combatentes das RSF e milícias árabes aliadas supostamente atacaram pessoas de grupos étnicos não árabes, como os massalit — o que as RSF negaram anteriormente.
Uma mulher massalit que conheci em um acampamento de refugiados na fronteira com o Chade contou como foi estuprada por combatentes das RSF e ficou incapaz de andar por quase duas semanas, enquanto a ONU denunciou que meninas de apenas 14 anos foram estupradas.
Um homem me contou como testemunhou um massacre pelas forças das RSF — ele escapou depois de ser ferido e deixado para trás para morrer.
A ONU estima que entre 10 mil e 15 mil pessoas foram mortas em el-Geneina somente em 2023. E agora mais de 250 mil pessoas da cidade — metade de sua antiga população — estão vivendo em acampamentos de refugiados no Chade.
Apresentamos essas acusações às RSF, mas eles não responderam. No entanto, no passado, negaram qualquer envolvimento na limpeza étnica em Darfur, dizendo que os perpetradores haviam usado roupas das RSF para transferir a culpa para eles.
Poucos jornalistas tiveram acesso a el-Geneina desde então, mas após meses de negociação com as autoridades civis da cidade, uma equipe da BBC foi autorizada a visitar o local em dezembro de 2024.
Fonte: BBC.