O documento tem quatro anos e um título burocrático e brando – “Princípios Básicos da Política de Estado sobre Dissuasão Nuclear” – mas o seu conteúdo é assustador, especialmente com as suas mais recentes revisões.
Mais conhecida como doutrina nuclear da Rússia, a versão revisada que foi assinada nesta terça-feira (19) pelo presidente Vladimir Putin enumera as circunstâncias que lhe permitem utilizar o arsenal atômico de Moscou, o maior do mundo.
Essa nova versão facilita o uso do arsenal, dando essa opção ao Kremlin em resposta até mesmo a um ataque convencional apoiado por uma potência nuclear. Isso possivelmente poderia incluir o uso de mísseis ATACMS fornecidos pelos EUA para Ucrânia para atingir o território russo – o que Moscou diz ter acontecido nesta mesma terça-feira, quando seis mísseis atingiram a região de Bryansk.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, enfatizou que tais ataques poderiam potencialmente deflagrar uma resposta nuclear nos termos do documento revisado.
O que é a doutrina nuclear russa?
A doutrina nuclear é descrita em um documento cuja primeira versão foi assinada por Putin em 2020; ele aprovou a versão mais recente na terça-feira, segundo o Kremlin. O texto descreve quando a Rússia poderá recorrer ao seu arsenal atômico.
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022, Putin e outras vozes do Kremlin têm ameaçado frequentemente o Ocidente com o seu arsenal nuclear. Mas isso não impediu os aliados de Kiev de lhe darem milhares de milhões de dólares em armas avançadas, algumas das quais atingiram solo russo.
O documento revisado descreve as armas nucleares como “um meio de dissuasão”, observando que a sua utilização é uma “medida extrema e obrigatória”. Declara que a Rússia “faz todos os esforços necessários para reduzir a ameaça nuclear e evitar o agravamento das relações internacionais que poderiam desencadear conflitos militares, incluindo os nucleares”.
Essa dissuasão nuclear visa salvaguardar a “soberania e integridade territorial do Estado”, dissuadir um potencial agressor ou, “em caso de conflito militar, prevenir uma escalada das hostilidades e detê-las em condições aceitáveis para a Federação Russa”, diz o documento.
“A dissuasão nuclear visa garantir que qualquer adversário potencial perceba a inevitabilidade da retaliação no caso de uma agressão contra a Rússia e os seus aliados”, afirma.
Embora formulada de forma ampla para evitar um compromisso firme de utilização nuclear e manter o Ocidente em dúvida sobre a resposta de Moscou, a versão modernizada enuncia as condições sob as quais Putin poderia usar uma opção nuclear em resposta a um ataque convencional.
Mudanças na doutrina estão em andamento há meses, e não é por acaso que o anúncio de terça-feira de uma nova versão é anunciada dois dias após a decisão de Washington de permitir que a Ucrânia use seus mísseis de longo alcance para atingir alvos na Rússia. Durante meses, o presidente dos EUA, Joe Biden, ponderou os riscos de tal escalada.
O que desencadeia uma resposta nuclear russa?
A doutrina diz que Moscou poderia usar armas nucleares “em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa” contra a Rússia ou os seus aliados, bem como em caso de agressão contra a Rússia e a Belarus com armas convencionais que ameacem “sua soberania e/ou integridade territorial”.
Qualquer agressão contra a Rússia por uma potência não nuclear com a “participação ou apoio de uma potência nuclear” será vista como um “ataque conjunto” à Rússia, acrescenta o documento.
Acrescenta que as armas nucleares poderiam ser usadas nos seguintes cenários:
- se forem recebidas informações confiáveis sobre o lançamento de mísseis balísticos visando o território da Rússia ou dos seus aliados;
- se armas nucleares ou outras armas de destruição em massa atingirem o território da Rússia ou dos seus aliados, ou forem utilizadas para atingir unidades militares russas ou instalações no estrangeiro;
- se o impacto de um inimigo sobre instalações governamentais ou militares russas de importância crítica puder minar a capacidade de um ataque nuclear em retaliação;
- se a agressão contra a Rússia ou Belarus com armas convencionais constituírem uma ameaça crítica à soberania e integridade territorial de ambos os países;
- se forem recebidas informações confiáveis sobre o lançamento ou a decolagem de aeronaves estratégicas e táticas, mísseis de cruzeiro, drones, veículos hipersônicos ou outros veículos voadores que tenham atravessado a fronteira russa.
O presidente pode informar os líderes militares e políticos de outros países ou organizações internacionais “sobre a disponibilidade para usar armas nucleares”, ou que já decidiu usá-las.
O uso de armas nucleares é iminente?
Mesmo antes de assinar a nova versão da doutrina, Putin alertou os EUA e a Otan para que não permitissem que a Ucrânia atacasse a Rússia com mísseis de longo alcance fornecidos pelo Ocidente, dizendo que isso colocaria a Rússia e a Otan em guerra.
Questionado na terça se o ataque ucraniano poderia potencialmente desencadear uma resposta nuclear, Peskov respondeu que sim. Ele mencionou a nova redação da doutrina que abre a possibilidade de uso do arsenal nuclear após um ataque convencional, caso ele ameace a soberania e integridade territorial da Rússia.
Peskov também destacou a nova menção da doutrina, que considera um ataque de um país apoiado por uma potência nuclear como uma agressão conjunta contra a Rússia .
Tatiana Stanovaya, do Carnegie Russia and Eurasia Center, observou que o comentário de Peskov marcou a primeira vez que o Kremlin reconheceu explicitamente “o potencial uso de armas nucleares como resposta a ataques em território russo usando mísseis de longo alcance”.
“Simplificando, Peskov admite abertamente que o Kremlin está considerando a possibilidade de um ataque nuclear”, disse ela.
Embora a doutrina preveja uma possível resposta nuclear por parte da Rússia, ela é formulada de forma ampla para evitar um compromisso firme de utilização de armas nucleares e manter abertas as opções de Putin.
Os EUA não viram qualquer mudança na postura nuclear da Rússia, de acordo com um funcionário do Conselho de Segurança Nacional dos EUA que não estava autorizado a comentar publicamente e pediu anonimato à reportagem. Como resultado, a administração Biden “não viu qualquer razão para ajustar a nossa própria postura ou doutrina nuclear em resposta às declarações da Rússia hoje”, acrescentou o responsável.
Jack Watling, pesquisador sênior do “think tank” Royal United Services Institute, no Reino Unido, disse que o uso de mísseis ocidentais de longo alcance “certamente não desencadeará” a resposta nuclear de Moscou, como temem alguns analistas no Ocidente.
Ele acrescentou, no entanto, que “a Rússia pode escalar o conflito de várias maneiras para impor derrotas ao Ocidente, desde a sabotagem submarina até o emprego de representantes para atrapanhar o fluxo de navios em Bab el-Mandeb”, um estreito no Mar Vermelho onde diversos ataques de houthis têm ocorrido.
Dmitri Medvedev, vice-chefe do Conselho de Segurança da Rússia, presidido por Putin, foi ainda mais contundente. O uso de mísseis da Otan pela Ucrânia para ataques em território russo “poderia ser classificado como um ataque dos países do bloco à Rússia”, disse ele.
“Nesse cenário, a Rússia reserva-se o direito de retaliar com armas de destruição em massa contra Kiev e as principais instalações da otan, onde quer que estejam localizadas”, disse ele. “Isso equivaleria à Terceira Guerra Mundial.”
Stanovaya afirma que “a situação atual oferece a Putin uma tentação significativa de escalada” e marca “uma conjuntura extraordinariamente perigosa”.
“Putin pode tentar apresentar ao Ocidente duas escolhas difíceis: ‘Você quer uma guerra nuclear? Então você a terá’ ou ‘Vamos acabar com esta guerra nos termos da Rússia'”, postou ela no X.
Isso não interferiria em quaisquer possíveis iniciativas de paz, mas poderia reforçar o argumento do presidente eleito, Donald Trump, a favor do diálogo direto com Putin, disse ela.
Fonte: AP.