Na noite do dia 8 de fevereiro deste ano, os dissidentes das guerrilhas colombianas Farc viveram um inferno, segundo o relato de militares da Colômbia.
Às 3h da manhã, guerrilheiros dissidentes que estavam no Estado venezuelano de Apure, próximo à fronteira com a Colômbia, foram bombardeados pelo ar pelas Forças Armadas da Venezuela.
Conforme publicado alguns dias depois pelo jornal El Colombiano, citando fontes de inteligência das Forças Armadas da Colômbia, o ataque foi realizado com drones armados.
“Isso seria uma novidade porque, se confirmado, faria da Venezuela o segundo país do hemisfério, depois dos Estados Unidos, a usar armamento real a partir de drones”, afirma Andrei Serbin Pont, diretor da Coordenadoria Regional de Pesquisas Econômicas e Sociais (CRIES), uma rede de centros de pesquisa na América Latina e no Caribe.
As autoridades venezuelanas nunca confirmaram o uso de drones armados no conflito em fevereiro. Entretanto, alguns meses depois, o governo de Nicolás Maduro exibiu, durante um desfile militar, drones com capacidade de ataque.
Assim, a Venezuela tornou-se, segundo especialistas, o primeiro país da América Latina a ter drones armados.
Para saber como o país conseguiu isso, é preciso voltar a atenção para suas relações com o Irã.
Armados e não tripulados
Em 5 de julho, durante o desfile militar para comemorar o Dia da Independência, as Forças Armadas da Venezuela mostraram dois modelos diferentes de drones com capacidade ofensiva.
O Antonio José de Sucre 100 (ANSU 100) foi apresentado como um meio de “observação, reconhecimento e ataque”. Já o Antonio José de Sucre 200 (ANSU 200) foi descrito como uma aeronave de “velocidade, alto sigilo e capacidade de observação, reconhecimento, ataque, caça antidrones e supressão da defesa aérea inimiga”.
Segundo o narrador do desfile, ambos os dispositivos eram de “design e fabricação venezuelana”.
No entanto, vários especialistas apontaram que pelo menos o ANSU 100 é na verdade uma versão modernizada do drone iraniano Mohajer 2.
Esses dispositivos não tripulados foram os primeiros comprados pela Venezuela do Irã durante o governo de Hugo Chávez.
De acordo com as informações disponíveis no banco de dados de equipamentos militares ODIN, pertencente ao Exército dos Estados Unidos, a Venezuela assinou um acordo com o Irã em 2007 para montar 12 unidades do Mohajer 2, a partir de partes e peças fornecidas pela Força Quds da Guarda Revolucionária do Irã.
Os aparelhos começaram a ser montados em 2009 pela Cavim, a estatal venezuelana responsável pela produção de armas e munições.
Em junho de 2012, em uma transmissão pela televisão, Chávez mostrou pela primeira vez esses dispositivos não tripulados. Foi dito que eles seriam usados em missões de reconhecimento e que os funcionários venezuelanos que trabalharam no projeto haviam sido treinados no Irã.
Foi dito ainda que o modelo montado pela Cavim dispunha de câmeras de vídeo e fotografia de alta resolução e que, embora em princípio ele só pudesse ser utilizado em voos diurnos, estava em curso a adaptação para voos noturnos.
Os ANSU 100 exibidos no desfile de 5 de julho são vistos como uma versão modernizada do Mohajer 2.
Nos últimos anos, a relação entre Irã e Venezuela só se fortaleceu, principalmente porque os dois países são alvos de sanções impostas pelos Estados Unidos, que consideram autoritários tanto o governo de Caracas quanto o de Teerã.
“Em teoria, supõe-se que é uma modernização baseada no Mojaher 6 [o modelo mais avançado desse tipo de drone]. Se você olhar as fotos do Mohajer 2, verá que em vez de um trem de pouso eles tinham tipo esquis, porque eram lançados de uma plataforma”, diz Serbin Pont.
“Como parte da modernização recente, o que se fez foi colocar um trem de pouso com rodas, com a ideia de que possam operar diretamente em pistas normais.”
O analista afirma que esses dispositivos foram exibidos juntamente com um tipo de munição guiada Qaem, também fabricada no Irã, que permite atacar alvos no ar com considerável precisão.
“Não temos evidências sobre as condições de operação desse novo modelo e se ele foi usado com essa arma. Há fontes que indicam que sim”, aponta Serbin.
Deve-se notar que, durante o desfile de 5 de julho, tanto o ANSU 100 quanto o ANSU 200 foram exibidos enquanto eram transportados por veículos terrestres.
Este detalhe é especialmente importante no caso do ANSU 200, pois antes do desfile, apenas eram conhecidos desenhos e maquetes dele, sem que sua operacionalidade tenha sido demonstrada.
Em novembro de 2020, durante uma transmissão televisiva, Maduro anunciou que a Venezuela também iria fabricar drones multiuso e “para defesa nacional”. O presidente disse que os aparelhos seriam construídos com alumínio venezuelano e seriam produzidos também para exportação. As imagens mostram um objeto que parece ser uma maquete do Mohajer 6.
Um projeto ambicioso e opaco
O desenvolvimento de drones na Venezuela tem sido marcado por duas características: o apoio do Irã e o sigilo.
“O programa de drones da Venezuela vem do Irã. A Venezuela não tinha um programa de drones antes de sua cooperação com o Irã”, diz Joseph Humire, diretor executivo do Centro para uma Sociedade Segura e Livre (Center for a Secure Free Society), um centro de estudos com sede em Washington.
Humire indica que, quando estas parcerias foram lançadas, entre 2006 e 2007, acordos de cooperação militar foram embutidos em acordos comerciais e em acordos energéticos — nos quais participavam as empresas estatais de petróleo de ambos os países.
No início, essa cooperação avançou lentamente. Levou anos para que os primeiros drones iranianos fabricados na Venezuela ficassem prontos, por volta de 2011. Os aparelhos foram fabricados e montados nas instalações da Cavim na base aérea Libertador, na cidade de Maracay, no centro da Venezuela.
Apesar dos contratempos, Humire avalia que se trata de uma iniciativa séria que pode até ter dupla aplicação: civil e militar.
O analista lembra que o programa foi pausado entre 2013 e 2016. A partir daí, os dois países decidiram fortalecer a cooperação na área de defesa, mas tiveram que lidar com as restrições impostas pelas sanções das Nações Unidas, que impediam o Irã de exportar sistemas de armas.
Logo depois, a Venezuela criou seu primeiro batalhão de drones, incluindo não apenas aeronaves iranianas, mas também outros aparelhos de vigilância vindos da China e da Rússia.
“Assim, a Venezuela se equipou pela primeira vez, com sucesso, de um verdadeiro programa de drones — já que, inicialmente, o que houve foi como um programa piloto”, diz o especialista.
Segundo Humire, foi graças ao uso de drones iranianos que as autoridades venezuelanas conseguiram detectar a chamada Operação Gideon, a tentativa fracassada de pouso de um grupo de exilados venezuelanos acompanhados por dois ex-veteranos dos Estados Unidos em maio de 2020, com o suposto objetivo de capturar Maduro.
“Portanto, temos visto o uso de drones principalmente em tarefas de vigilância, mas isso vai muito além do que eles faziam no passado: voos de teste e pequenas missões de reconhecimento.”
A modernização venezuelana do Mohajer 2 foi realizada pela empresa de serviços aeroespaciais Eansa — uma subsidiária da companhia aérea estatal Conviasa, que também tem sede na base aérea Libertador, em Maracay.
Não está claro o quão avançado está o programa de drones armados da Venezuela, pois eles não foram vistos em ação e não se sabe quantos deles existem. Tampouco há respostas sobre se os drones são apenas Mohajer 2 atualizados ou se foram fabricados do zero ou comprados.
A BBC New Mundo (serviço em espanhol da BBC) entrou em contato com o Ministério das Comunicações venezuelano para solicitar informações sobre seu programa de drones, mas até o momento da publicação, nenhuma resposta havia sido recebida.
O que os especialistas concordam é que a Venezuela seria o primeiro país da região a ter drones com capacidade ofensiva.
Jochen Kleinschmidt, pesquisador em relações internacionais do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Católica Eichstätt-Ingolstadt (Alemanha), afirmou que o Brasil está buscando formas de integrar mísseis antitanque modernos em seus veículos aéreos não tripulados (UAVs, como drones são conhecidos por sua sigla em inglês), além de se equipar com drones suicidas.
“Como tudo isso está em seus estágios iniciais, seria correto, até onde eu sei, dizer que os únicos drones armados na América Latina são talvez os Mohajers venezuelanos e seus derivados, e os drones civis armados usados por algumas organizações criminosos mexicanas”, diz Kleinschmidt.
Joseph Humire, por sua vez, avalia que a Venezuela tem objetivos que vão muito além de usar os drones ofensivamente.
“É muito mais do que apenas os drones. A Venezuela não quer produzir os drones apenas localmente, mas também exportá-los”, diz o analista.
“Na Venezuela, eles estão criando uma estrutura local endógena para produzir drones em meio a uma estratégia militar mais ampla — algo em que os iranianos são muito bons em termos de uso de drones: capacidades anfíbias assimétricas, basicamente a combinação de drones com lanchas rápidas de ataque e com sistemas de satélite que permitem monitorar as águas”, explica.