Índia e China se engajaram em uma temporada de confrontos, provocações e desentendimentos na região contestada de Ladakh, no Himalaia. Quais as chances de conflito militar e quais grupos têm interesse na deterioração das relações entre as duas potências nucleares?
No dia 15 de junho deste ano, confronto entre soldados de China e Índia na zona contestada de Ladakh deixou pelo menos 20 soldados indianos mortos e deu início a uma temporada de provocações, notícias falsas e confrontos entre os dois países.
A possibilidade de eclosão de um conflito militar entre duas potências nucleares veio assombrar um ano já bastante conturbado pela pandemia e pela crise climática.
“As tensões na fronteira terem se agravado durante a pandemia é mera coincidência”, disse à Sputnik Brasil Aleksei Kupriyanov, pesquisador sênior do Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais Primakov da Academia de Ciências da Rússia (IMEMO-RAN, na sigla em russo).
“Mas a quarentena, a carência de novos acontecimentos e uma atmosfera geral de alarme contribuíram para a reação extremamente sensível da sociedade indiana” aos acontecimentos na fronteira, explicou Kupriyanov.
Origem do conflito
Segundo Kupriyanov, “Ladakh foi por muito tempo um reino independente no Himalaia”, até que, “em 1842, foi anexado pelo reino de Jammu e Caxemira”.
A partir de 1858, o subcontinente indiano foi em boa parte dominado pelo Reino Unido, e “a região de Jammu e Caxemira foi anexada como um reino semiautônomo pelo Império Britânico”, relatou.
Os problemas começaram “durante o processo de demarcação da fronteira entre a Índia britânica e a China”.
Na ocasião, “o Reino Unido decidiu delimitar a fronteira” de forma a “retirar da China o território de Aksai Chin, que faz parte de Ladakh e tinha sido anexado a Jammu e Caxemira”.
“Enfraquecida após a Revolução de Xinhai de 1911, […] a China não reconheceu oficialmente esta fronteira, mas teve que aderir a ela de fato”, conta Kupriyanov.
Após a independência da Índia do jugo britânico, em 1949, “Pequim e Nova Deli não chegaram a um acordo sobre os territórios contestados, como Aksai Chin”.
“A Índia não estava preparada para modificar a fronteira delimitada pelos britânicos, enquanto os chineses a consideravam injusta.”
Em 1962, os países travaram uma guerra fronteiriça, durante a qual a China anexou a região de Aksai Chin.
“A Índia não reconhece a anexação de Aksai Chin pela China e, atualmente, entre a região chinesa de Aksai Chin e a região indiana de Ladakh não há fronteira delimitada, mas somente uma linha de controle”, ressaltou Kupriyanov.
“Mas mesmo o trajeto exato dessa linha de controle é um assunto contencioso entre Pequim e Nova Deli. Por isso, não é raro que ocorram confrontos nas áreas disputadas”, explicou o pesquisador sênior.
Nervos à flor da pele
O conflito no dia 15 de junho gerou uma enorme quantidade de notícias falsas na Índia, desde falsos funerais em homenagem a soldados mortos até imagens falsas de combate entre soldados.
Para Kupriyanov, tais notícias falsas são produzidas por grupos que têm interesse na deterioração das relações entre Pequim e Nova Deli.
“Normalmente, internautas do Paquistão espalham ativamente notícias falsas sobre os confrontos indochineses”, notou o pesquisador.
“Na própria Índia, há muitas pessoas que são radicalmente antichinesas: a derrota na guerra de 1962 ainda é percebida de forma dolorosa”, acentuou.
Nesta segunda-feira (14), o ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Shah Mahmood Qureshi, declarou em entrevista exclusiva à Sputnik que “espera que o bom senso prevaleça” na contenda fronteiriça entre Índia e China.
Quando perguntado sobre qual lado o Paquistão apoiaria em caso de conflito militar, Qureshi disse rezar para que um conflito não aconteça.
“Mas é sabido que temos uma relação muito importante e muito estratégica com a China”, notou o ministro.
Para Kupriyanov, apesar da possibilidade de conflito militar entre China e Índia ser “bastante baixa”, ela “não pode ser descartada”:
“Nem Nova Deli nem Pequim estão interessadas em um conflito em grande escala, muito menos em uma guerra nuclear, mas, infelizmente, a possibilidade de um conflito de fronteira local não pode ser descartada”, acredita.
“Em ambos os lados, militares e comandantes com atitudes militaristas estão mobilizados. Suas ações, por vezes duras, podem provocar agravamento da situação, mesmo sem uma ordem do centro”, ponderou.
Mediação do conflito
A Rússia emergiu como uma possível mediadora do conflito entre Índia e China, uma vez que mantém laços com os dois países em blocos internacionais como o BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai.
“Para a Rússia, toda essa situação é extremamente desagradável, uma vez que Índia e China são suas parceiras estratégicas”, disse Kupriyanov.
No entanto, Índia e China “rejeitam categoricamente qualquer interferência externa, de modo que o máximo que a Rússia pode fazer é fornecer uma plataforma para consultas”, disse o pesquisador sênior.
E foi exatamente isso o que aconteceu: nesta quinta-feira (10), durante reunião da Organização de Cooperação de Xangai celebrada em Moscou, os ministros das relações exteriores de China e Índia chegaram a um acordo de diminuição das tensões na região contestada.
A declaração conjunta reconhece que a situação não é do interesse de nenhum dos lados e reativa mecanismos de diálogos estabelecidos entre os países, como o Mecanismo para Consultas e Coordenação para Assuntos da Fronteira entre China e Índia (WMCC, na sigla em inglês).
Considerado um primeiro passo rumo à diminuição das tensões entre as potências, o acordo demonstra que, mesmo em tempos de pandemia e fake news, a diplomacia ainda é capaz de atuar em prol de caminhos para a paz.
Entre os dias 9 e 10 setembro, Moscou sediou reunião dos ministros das Relações Exteriores da Organização de Cooperação de Xangai, grupo que compreende Cazaquistão, China, Índia, Paquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão.