Documentos vazados ao jornal “New York Times” mostram pela primeira vez como surgiram os campos de detenção na região de Xinjiang, no sul da China, onde são mantidos cidadãos de minoria muçulmana, e de que maneira eles são aprisionados em massa para serem submetidos a tratamentos para se livrarem do “vírus do extremismo religioso”.
De acordo com o jornal, 403 páginas de documentos foram entregues por um membro do meio político chinês, que permaneceu em anonimato, e que espera que líderes do Partido Comunista, entre eles o presidente chinês Xi Jinping, sejam responsabilizados por seus atos.
Os textos contêm trechos de discursos secretos de Xi a líderes da região, nos quais ele menciona que é preciso ser “severo” e “demonstrar absolutamente nenhuma misericórdia”.
Embora não mencione especificamente detenções em massa ou a criação dos campos, o presidente chega a dizer que o partido precisa lançar mão de ferramentas da “ditadura” para erradicar o Islã radical da região de Xinjiang.
Ele compara o extremismo islâmico alternadamente a um contágio semelhante a um vírus e a uma droga perigosamente viciante, e diz que lidar com ele exige “um período de tratamento interventivo e doloroso”.
Enquanto líderes chineses anteriores enfatizavam o desenvolvimento econômico para reprimir a agitação em Xinjiang, Xi afirma que isso não é suficiente. Ele fala em uma cura ideológica, um esforço para reconectar o pensamento das minorias muçulmanas da região.
O surgimento dos campos
O mais próximo que o presidente chega de sugerir a criação dos campos é uma defesa de um programa de doutrinação mais intenso nas prisões de Xinjiang, durante uma visita em 2014.
“Deve haver reforma educacional e transformação eficazes de criminosos. E mesmo depois que essas pessoas sejam libertadas, sua educação e transformação devem continuar”, afirma.
Meses após esse discurso, os campos de doutrinação começaram a ser abertos na região. No início, eles ainda não tinham o formato dos campos atuais: eram pequenas instalações que promoviam sessões onde centenas de cidadãos da etnia Uighur eram pressionados a renegar sua devoção ao Islã e demonstrar gratidão ao Partido Comunista.
A situação mudou em agosto de 2016, quando Chen Quanguo foi transferido do Tibete para governar Xinjiang. Considerado “linha dura”, ele reformulou a política local e expandiu drasticamente esses locais, acrescentando novos controles de segurança.
Em fevereiro de 2017, ordenou a milhares de policiais e militares que se preparassem para uma “ofensiva esmagadora, obliterante”. E, segundo os documentos obtidos pelo “NYT”, nas semanas seguintes estabeleceu planos para o início das detenções de Uighurs em grande escala.
Estudantes
Parte dos documentos inclui diretivas de como devem ser tratados os universitários que voltam à região, ao constatarem que seus familiares – detidos nos campos – estão desaparecidos de suas casas.
Entre as instruções, é explicado que oficiais à paisana devem receber os estudantes assim que possível e “demonstrar preocupação humana e ressaltar as regras”.
“Eles estão em um treinamento escolar determinado pelo governo”, é a resposta inicial indicada, seguida pela explicação de que, embora seja um programa educacional, as pessoas não são livres para sair quando quiserem.
A seguir, os jovens ouvem um ponto de extrema importância: “temos certeza de que vocês irão apoiá-los, porque é para o bem deles – e para o de vocês também”.
Em tom de ameaça velada, eles são informados de que as “notas” de seus familiares nos estudos também dependem de seus comportamentos do lado de fora, e que, portanto, é melhor que colaborem sem questionar ou se rebelar.
As informações incluem ainda uma explicação sobre a contaminação pelo “vírus” do radicalismo islâmico, e que mesmo avós ou outros membros idosos e aparentemente inofensivos da família não podem ser poupados porque podem ter sido infectados.
Xinjiang
Xinjiang é uma região rica em recursos naturais no sul da China, próxima à fronteira com o Paquistão, Afeganistão e a Ásia Central. Mais da metade de sua população de 25 milhões de habitantes é composta por minorias étnicas muçulmanas, sendo os Uighurs o maior desses grupos.
Estima-se que mais de um milhão de Uighurs, Cazaques e membros de outras etnias muçulmanas tenham sido detidos pelas autoridades em campos nessa região desde 2017. Eles passam por meses ou até anos de doutrinações e interrogatórios, que visam fazer com que abandonem sua religião e se tornem apoiadores do Partido Comunista.
Segundo os documentos obtidos pelo “New York Times”, há referências a planos de estender os planos de combate ao Islã a outras partes da China.
Fonte: G1.