A queda do ditador Bashar al-Assad, na Síria, revelou a complexidade da atual geopolítica no Oriente Médio após meses de escalada de tensões e conflitos. Enquanto o mundo observa com cautela a mudança no governo sírio, o episódio sinaliza um possível enfraquecimento do chamado “Eixo da Resistência”.
O regime de Assad terminou após uma ação “relâmpago” de rebeldes opositores, que avançaram e conquistaram as maiores cidades da Síria até chegarem à capital, Damasco. O ditador abandonou o país e recebeu asilo na Rússia.
A ofensiva ocorreu no contexto da guerra civil na Síria, que já dura 13 anos. Em 2011, manifestações pacíficas pedindo mais democracia terminaram em repressão militar, desencadeando um conflito em larga escala que resultou em destruição e milhares de mortos.
Naquela época, Assad conseguiu se manter no poder com o apoio de seus principais aliados: Rússia e Irã. Agora, no entanto, a situação foi diferente. Membros do movimento rebelde Organização para a Libertação do Levante (HTS, na sigla local) afirmaram que a ofensiva avançou rapidamente devido à falta de apoio do Irã na Síria.
Esse enfraquecimento ocorreu principalmente porque grupos financiados pelo governo iraniano, que atuavam na Síria, perderam força nos últimos meses, em decorrência das ações de Israel.
Agora, a mudança no governo da Síria pode custar ao Irã a peça-chave no chamado “Eixo da Resistência”, que é uma rede de influência iraniana que conta com a participação de grupos como o Hezbollah e os Houthis.
Para Uriã Fancelli, mestre em relações internacionais pelas universidades de Estrasburgo e Groningen, a queda do regime Assad faz com que o tabuleiro geopolítico do Irã desmorone, com risco de isolamento ainda mais profundo do país no cenário internacional.
Além disso, essa mudança de governo deve ter impacto no grupo extremista Hezbollah, nos terroristas do Hamas e até na própria Rússia.
O impacto para o Irã
A queda de Bashar al-Assad representa um golpe profundo para o Irã, que perde um aliado estratégico crucial no Oriente Médio. O país lidera o Eixo da Resistência, que faz forte oposição ao Estado de Israel.
O regime de Assad na Síria era visto como uma peça central na influência do Irã sob o Eixo da Resistência. Isso porque o governo iraniano usava o território sírio para abastecer grupos aliados.
“A Síria sempre foi um corredor logístico indispensável para o envio de armas e o financiamento do Hezbollah”, analisa Uriã Fancelli, mestre em relações internacionais.
Com o colapso do regime sírio, o Irã pode enfrentar dificuldades para apoiar o Hezbollah – já enfraquecido pela guerra contra Israel – e outros grupos financiados pelo próprio governo. Essa perda de influência regional aumenta o risco de isolamento do país.
Por outro lado, o Irã pode optar por intensificar seu programa nuclear em uma tentativa de manter relevância geopolítica.
“Para um regime que já se mostrou mestre em operar no fio da navalha, a aposta em armas nucleares poderia parecer a única saída viável para manter sua relevância na região”, afirma Fancelli.
Uma outra possibilidade que surge no horizonte é o aprofundamento das relações entre Rússia e Irã. Os Estados Unidos, por exemplo, já acusaram Teerã de fornecer armamento para que Moscou ataque a Ucrânia.
As fragilidades para o Hezbollah
Sem o suporte logístico oferecido pelo Irã através Síria, o Hezbollah enfrenta um dos momentos mais frágeis de sua história. O grupo extremista libanês perdeu força nos últimos meses durante a guerra com Israel.
As fragilidades do Hezbollah ficaram muito evidentes em setembro, quando o grupo foi alvo de um ataque de inteligência de Israel que provocou a explosão de pagers e walkie-talkies usados pelo grupo.
Depois, Israel conseguiu assassinar o chefe do grupo, Hassan Nasrallah, e outras lideranças. Além disso, bombardeios israelenses no Líbano destruíram infraestruturas essenciais usadas pelo Hezbollah.
“Com a queda do regime sírio, o Hezbollah perde também o corredor terrestre que conectava o Irã ao grupo, essencial para o fornecimento de armas. Sem esse suporte logístico, o que resta é um Hezbollah amputado e dependente de retóricas vazias para tentar manter a relevância”, diz Fancelli.
O professor analisa ainda que, se antes o Hezbollah era temido pela força bélica, agora aposta na propaganda para tentar manter algum respeito. Enquanto isso, o grupo extremista aceitou um cessar-fogo que é constantemente violado por Israel, sem conseguir demonstrar capacidade de resposta.
“É uma debilidade que ficou ainda mais evidente quando o grupo falhou em atuar ao lado de Assad nos últimos dias durante o colapso de seu regime.”
Como fica o Hamas
Ao contrário do Hezbollah, o Hamas celebrou a queda do regime de Assad. Em um comunicado, o grupo terrorista parabenizou o povo sírio por alcançar suas “aspirações por liberdade e justiça” diante da ação de opositores.
O Hamas disse que esperava que a Síria pós-Assad continuasse “seu papel histórico e fundamental no apoio ao povo palestino”.
Uriã Fancelli explica que, apesar de a celebração do Hamas parecer contraditória em um primeiro momento, o grupo terrorista apoiou sunitas que lutavam contra o regime de Assad no início da guerra civil da Síria, em 2011.
No ano seguinte, o Hamas desocupou uma sede que tinha em Damasco. Esse movimento irritou o Irã, que é um aliado do grupo terrorista. As relações só foram restauradas em 2022, quando chefes do Hamas se encontraram com Assad.
“A queda de Assad na Síria poderia abrir uma nova janela de oportunidade para o Hamas, permitindo uma reaproximação com outros grupos sunitas na região”, analisa Fancelli.
O HTS, que deve se firmar no poder da Síria após o fim do regime de Assad, tem grande potencial de se tornar um aliado estratégico do Hamas.
Em relação à guerra com Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu afirmou na segunda-feira (9) que a queda de Assad pode abrir caminho para um acordo que possibilite a libertação dos reféns mantidos pelo Hamas desde outubro de 2023.
A Rússia diante do conflito
A derrota de Assad, embora tenha sido impulsionada por fatores internos — como a crise econômica e a insatisfação popular — também foi resultado da falta de apoio internacional.
Em 2015, a Rússia teve um papel decisivo para manter o Bashar al-Assad no poder. À época, o país apostou na intervenção aérea e apoio logístico ao regime sírio. Agora, no entanto, a resposta à ação relâmpago de rebeldes opositores foi diferente.
O professor Uriã Fancelli afirma que, apesar de Moscou ter interesses estratégicos na região, desta vez a Rússia preferiu evitar um engajamento mais direto.
“Isso manda uma mensagem bem forte aos inimigos do Kremlin: a Rússia está atolada na guerra da Ucrânia e simplesmente não tem recursos de sobra para se aventurar em outro conflito de alta intensidade”, analisa.
A troca de governo na Síria também coloca dúvidas em como ficarão as bases militares russas que estão na região. Atualmente, o país controla a base aérea em Hmeimim e a base naval em Tartous, como parte de uma troca de assistência militar concedida por Assad.
Fonte: G1.