22 de setembro de 2016.
Adriano fora declarado deus. Não obstante as paixões que o fizeram desprezível, e a crueldade que o tornou odiado, ele foi deificado. Os soldados, o povo, e as províncias, que haviam sido beneficiados por suas visitas e generosidade, clamaram por sua elevação às honras divinas. O senado, que ainda era a corporação mais inteligente do Império, estremecia sob a tirania de Adriano. Em seu leito de morte, ele condenou quatro deles à execução. Contudo, o fraco e degradado senado consentiu, e em sua honra, um templo foi erigido, e sacrifícios oferecidos. O absurdo desses gestos nos faria rir, se não envolvessem uma blasfêmia contra Deus, e faz-nos corar de constrangimento pela degradação da raça humana.
Era moda, naqueles dias, fazer dos imperadores deuses. Enquanto a carcaça era consumida na pira funerária, a família do morto pagava algum pobre coitado para jurar que vira o espírito divino subindo ao céu. “Por que motivo”, indaga Justino em sua Apologia em defesa dos cristãos, “vós condescendeis em consagrar à imortalidade os imperadores que morrem entre vós, fazendo alguém asseverar que viu o César queimado subindo da pira funerária ao céu?”
Alguns anos após a morte de Adriano, uma das concubinas de Antônio foi declarada deusa; e o próprio Antônio, depois de morrer, foi adorado na forma de uma estátua de bronze erguida num magnífico templo no Fórum. Uma das ruínas mais imponentes do antigo Fórum é o esplêndido pórtico de mármore desse templo, que ainda ostenta em seu entablamento danificado a marca de grandes letras: “Dívo Antinino et Divae Faustinae”. Não é de admirar, pois, que o imperador Cômodo, poucos anos mais tarde, impaciente pelas honras reservadas a ele para depois de sua morte, declarou-se deus enquanto vivia, e fez com que lhe oferecessem sacrifícios, dizendo-se filho de Júpiter na assembléia do senado. Como a nuvem tempestuosa envolve a montanha, o pecado da idolatria pairou por séculos sobre a Roma paga, e pareceu envolver a infortunada cidade num manto de trevas impenetráveis: ela é a mulher vestida de escarlate, assentada sobre os sete montes’ a Babilônia do Apocalipse.
Historiadores pagãos, e mesmo alguns cristãos, contam que um dos melhores feitos de Adriano foi eleger Antônio como seu sucessor. Suas virtudes, para um pagão, eram notáveis e o seu fanatismo cego em adorar os deuses angariou-lhe o título de Pio. Marco Aurélio, seu filho adotivo, que o sucedeu no comando do império, deu-lhe o mais elevado caráter possível de se expressar em palavras.
Mas apesar dos excessivos louvores prodigalizados a Antônio, ele permanece para nós um perseguidor da Igreja de Cristo. Há manchas de crueldade e injustiça em seu caráter, que não poder ser apagadas por suas virtudes naturais. Quando lemos a respeito do sofrimento dos cristãos torturados com crueza inumana, do seu sangue derramado no Coliseu, e em Petra Scelerata, não podemos reconciliar os horrores de uma perseguição violenta com o caráter de brandura e justiça outorgado a ele por seu sucessor pagão. Registros encontrados nas lajes de mármore das catacumbas formam um triste contraste com os encômios a ele conferidos. Leia a tocante inscrição gravada rudemente na tumba de uma criança martirizada: ‘Alexander não está morto; vive além das estrelas! Pois quando estava se ajoelhando para oferecer o sacrifício (de oração) ao Deus verdadeiro, foi levado à morte. Oh, dias infelizes, quando mesmo em nossas orações e cultos, não estamos seguros. Mais miserável que a vida, e ainda mais miserável que a morte, é que não podemos ser sepultados por nossos parentes e amigos. Mas Alexander agora brilha no céu. Pouco tempo viveu, quem viveu quatro anos e dez meses.
Se Antônio relaxou o rigor da perseguição nos últimos anos de seu reinado, foi por caus. da eloqüência de Justino. Com coragem e zelo apostólico, ele reprovava o imperador, senado e o povo por sua injustiça e derramamento do sangue de cristãos indefesos, contrastava a inocência, a virtude e a santidade da vida cristã com os excessos do paganismo, o absurdo e a insensatez da idolatria e da pluralidade de deuses. Proclamava as evidências divinas da fé cristã, mais brilhante que o sol que resplandecia sobre ele, e os advertia da te prestação de contas que um dia lhes seria exigida pelo grande e necessariamente supremo Ser, a quem eles fingiam ignorar, ou desprezavam, abertamente, na perseguição aos seus servos. Antônio não era livre de ser influenciado por sentimentos nobres, e a eloqüência e o hábil raciocínio de Justino produziam-lhe na mente um efeito favorável. A espada da perseguição foi posta de volta na bainha, para aguardar o próximo tirano que manejaria o cetro dos césares.
Muitos cristãos caíram vítimas da perseguição de Antônio. Os Atos de Felícia relatam um emocionante episódio, que mostra a virulência da perseguição. Duas outras cenas são acuradamente descritas nos Atos dos mártires. Uma é sobre Potito, um jovem da Sardenha; a outra é sobre um bispo chamado Alexander, cuja igreja não é conhecida. A história de Potito é repleta de milagres; contém todo o romantismo das vidas que já relatamos, e baseia-se, como as mais, na certeza da verdade histórica, a partir do caráter inquestionável de seus registros. O belo, o simples e o natural, entrelaçados aqui e ali com o maravilhoso, fazem desta história uma das mais interessantes tradições que circulam pelas veneráveis paredes do Coliseu.
Os Atos não mencionam a época em que Potito foi arrastado ao tribunal para glorificar a Deus na profissão de sua fé. Das palavras empregadas, inferimos que ele era bem jovem. Em um lugar, ele é chamado de infante; noutro, de menininho, e mais freqüentemente, de rapaz. Conforme o costume daqueles tempos, um jovem era chamado de rapaz quando beirava os vinte anos, e de infante, aos dez ou doze. Assim, aventuramo-nos a dizer que Potito não tinha mais de doze ou treze anos quando se iniciaram as cenas de sua carreira extraordinária.
Seu pai era um pagão chamado Hilas. Ele era contrário ao cristianismo, e perseguia o filho por causa de seus princípios religiosos. Como o rapaz veio a conhecer a fé cristã não é mencionado. Os Atos, porém, conforme citamos dos Bolandistas, iniciam o seu registro com uma cena emocionante entre o pai pagão e o filho cristão.
Hilas costumava implorar e ameaçar na tentativa de demover o jovem Potito de permanecer cristão. Tudo em vão. A mente do menino estava iluminada por uma luz celestial, e o seu conhecimento e percepção da verdade sagrada elevavam-se muito acima da estupidez do paganismo. O pai, sentindo-o inexorável, enfureceu-se e trancou-o num quarto, avisando que não lhe daria comida nem água, enquanto ele não consentisse em abandonar o cristianismo.
-Vamos ver se o teu Deus te ajudará agora — resmungou o pai irado, enquanto retirava da fechadura a chave.
Ele deixou Potito trancado a noite inteira. De manhã, porém, sua agitação acalmara, e o seu amor de pai, que subsistia a qualquer paixão, levou-o de volta ao quarto onde o filho estava confinado. Encontrou Potito alegre e bem disposto; amor, surpresa e curiosidade assomaram-lhe à mente, e suscitaram mil indagações. Assumindo um tom de reconciliação e afeto, ele começou a seguinte conversa:6
— Oh, meu filho! Eu te imploro, sacrifica aos deuses. O imperador Antônio emitiu ordens qualquer um que não sacrifique seja torturado e exposto às feras. Como eu lastimo que sejas tão insensato!
— Mas, pai, para que deuses devo sacrificar? Quais são os seus nomes?
— Meu filho, não conheces Júpiter, Arfa,7 e Minerva?
— Bem, de fato, nunca ouvi dizer que Deus fosse chamado de Júpiter, ou Arfa, ou Minerva. Como Ele pode ter todos estes nomes? Oh, pai, se tu ao menos soubesses o quão poderoso é o Deus dos cristãos, que se entregou a si mesmo por nós e nos salvou, tu também crerias nele. Não sabes, pai, que um grande profeta disse: “Todos os deuses dos gentios são demônios!”? Foi Deus quem fez os céus, não Júpiter, Arfa, ou Minerva.
— Onde aprendestes estas coisas? — interrompeu rapidamente Hilas.
— Ah, pai! — replicou Potito, suavemente. — O Deus a quem eu sirvo fala através de mim. Ele mesmo disse em seu evangelho: “Não penses como ou o que falarás; ser-te-á dado na hora o que hás de dizer”.
— Mas, meu filho, não temes a punição que o imperador ameaçou infligir aos cristãos? Se fores levado perante Antônio, o que será de ti? Estas tuas doutrinas estranhas levarão teu corpo a ser rasgado pelos ganchos, e serás comido pelos leões!
Potito sorriu. Um reflexo da alegria celeste iluminou-lhe o belo semblante. Aproximando-se do pai, pôs-lhe nos ombros as mãos, e olhando-o afetuosamente, declarou com ternura e fervor:
— Pai, nunca me assustarás com estas coisas. Tu deves saber que eu posso todas as coisas naquele que me fortalece. Já ouviste contar que Davi matou o gigante Golias com uma pedra, e cortou-lhe a cabeça com a espada do próprio gigante, mostrando-a depois a todo o povo de Israel? Sua armadura e força eram o nome do Senhor. Sim, pai — continuou ele após uma pausa momentânea —, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, estou preparado para sofrer qualquer coisa por Jesus Cristo.
Potito fechou os olhos, uniu as mãos, e pôs-se a orar. O pai olhou para ele num silêncio aflito. Enquanto ouvira o filho falar, experimentara um terror que não poderia descrever. A coragem, a piedade e a eloqüência do garoto já lhe tinham vencido o coração, e a influência da graça que Potito parecia receber do céu completou nele a obra de conversão.
O menino, levantando a cabeça, fez mais um apelo; suas palavras foram acompanhadas pela eloqüência poderosa das lágrimas. Com todo o sentimento de seu coração amoroso, pediu ao pai:
— Oh, pai! Crê no Senhor Jesus Cristo, e serás salvo. Aqueles deuses a quem serves não possuem vida; não podem salvar-te. Eu te direi o que eles são, pai. São espíritos que queimarão na fogueira que nunca se extinguira. Como podes ser tão louco de adorar um pedaço de madeira colorida, ou uma estátua de mármore que não pode se mexer? Se ela cai, se quebra, e não pode se levantar. Eles são tão sem vida quanto o pó que pisamos, tão silenciosos quanto as pedras no leito do rio. Os répteis venenosos que rastejam na face da terra são mais poderosos que os teus ídolos, pois podem tirar-te a vida. Meu pai, como podem estas coisas inconscientes ter poder contra o grande Deus que criou todas as coisas, que estendeu o céu em toda a sua glória, vestiu a terra com toda a sua beleza, que é o único poderoso, e que calca sob o pé a cabeça do dragão e do leão?
No momento seguinte, Potito estava fechado nos braços do pai convertido, cujas lágrimas pingavam no chão – lágrimas de arrependimento.
Após a conversão do pai, Potito foi avisado por uma voz interior, que deveria retirar-se à solidão, a fim de preparar-se para as provações que Deus lhe tinha reservado. Ele obedeceu imediatamente. Deixou em segredo a casa paterna, e retirou-se para as montanhas de Epiro. Ali foi favorecido por muitas visões, e também tentado pelo Diabo. Deus enviou um anjo para avisá-lo que sofreria o martírio pela fé, e informá-lo de como e onde haveria de sofrer. O anjo instruiu-o a preservar-se da contaminação de qualquer vício, e ensinou-lhe como deveria lutar com o Diabo e escapar de suas ciladas e ilusões. Por último, avisou-o de que muito em breve teria de pôr em prática aquelas instruções. E de fato, antes que Potito deixasse a montanha, sofreu duras tentações e ilusões dos espíritos maus.
Numa ocasião, o Diabo apareceu-lhe tentando fazer-se passar por Jesus Cristo. Ele parecia tão belo e venerável, que o recém-convertido pensou por um momento ser mesmo o Senhor. Mas a sua humildade veio auxiliá-lo; logo ocorreu-lhe que não seria certo o Senhor Todo-Poderoso apresentar-se a um menino indigno, como ele se considerava.
— Meu querido Potito — começou o espírito mentiroso. — Por que te preocupas tanto com estas austeridades? Podes voltar agora mesmo a casa de teu pai, e comer e beber. Fui grandemente movido por tuas lágrimas, e vim consolar-te.
Curioso, duvidoso, e surpreso, o rapaz só pôde dizer: — Sou um servo de Jesus Cristo. Então o Diabo, com toda a impudência que o distingue, declarou: —Mas eu sou Cristo.
— Então vamos orar juntos. — sugeriu Potito.
No mesmo instante, o Diabo mudou de aparência, revelando quem era de fato. Potito tomou coragem e ordenou:
— Vá embora, Satanás, pois está escrito: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e somente a Ele servirás”.
— Eu vou — consentiu o Diabo. — Vou mostrar a minha força entre os pagãos. Tomei posse da filha de Antônio, e agora vou entrar no coração do imperador, e de Gelásio, o governador, e eles ordenarão que tu sejas morto com os mais formidáveis tormentos. Perseguir-te-ei até que morras.
— Vá embora, impostor malvado! — ordenou Potito. — Tu só podes fazer o que o meu Senhor permitir. Não temo tuas maquinações. Vencer-te-ei em nome do Senhor Jesus.
E o Diabo se foi, blasfemando contra Deus.
Depois de passar algum tempo na solidão da montanha, preparando-se em oração e abnegação para a tarefa que lhe fora destinada por Deus, o rapazinho deixou seu retiro, e dirigiu-se à cidade de Valéria, a principal da Sardenha, naquele tempo.
Potito não conhecia ninguém na grande cidade, e cansado e com fome, sentou-se à sombra do Fórum. As pessoas passavam por ele sem prestar-lhe atenção, envolvidas que estavam com as ocupações da vida. Os olhos do menino foram atraídos pelas imponentes construções à sua volta. Eram colunas, templos e pórticos de mármore maciço e de excelente qualidade. Do cenário variado, ele tirava belas reflexões. Cada beleza ou perfeição artística que ele contemplava era uma fonte adicional de gratidão ao Criador, que dera ao homem poder sobre a natureza bruta.
Entrementes, o jovem via uma nuvem ameaçadora pairar sobre aquele cenário de magnificência e arte. Ele procurou em vão pela cruz, símbolo de nossa redenção, que deveria brilhar à luz do sol, no pináculo dos templos. Em vez disso, a fumaça dos sacrifícios impuros, a abominação da desolação, subia em espirais na atmosfera sombria, como se os demônios dançassem em seus círculos. O vício e a imoralidade espalhavam-se por toda parte, e o jovem sentiu um estremecimento ao pensar que era o único servo do Deus vivo naquela vasta cidade.
Como o diamante que cindia com mais luminosidade junto a uma pedra bruta, a sua alma inigualável era a mais brilhante em meio à impiedade que o cercava, e as suas orações, mais poderosas perante Deus. A multidão que passava não sabia que o pobre menino descansando no gelado banco de pedra tornar-se-ia, em poucas horas, apóstolo do Altíssimo, para trazê-los ao conhecimento da salvação eterna. Os instrumentos dos maiores desígnios de Deus são as coisas humildes e pequenas deste mundo.
Enquanto o garoto meditava na melhor maneira de destruir o poder das trevas que pairavam como um nevoeiro sobre o povo ignorante, dois velhos, envolvidos numa conversa séria, vieram sentar-se no mesmo banco ocupado por ele. Potito ouviu a conversa. Fora plano de Deus que ele a ouvisse.
— Triste incidente para o nosso governador! — exclamou o mais alto e mais venerável dos dois, puxando a larga túnica sobre o ombro.
— O que houve? — indagou o outro. — Os deuses não teriam sido propícios ao nosso nobre Agatone?
— Só tu não ouviste ainda que um mau vento varreu-lhe a casa, e afetou Quiriaca, sua esposa, com uma doença asquerosa? Olha lá a fumaça subindo do templo de Júpiter! É a fumaça do sacrifício de três bois que Agatone ofereceu para aplacar a ira dos deuses. Mas a enfermidade da esposa está piorando, e frustrando a perícia de nossos melhores médicos. Quando passei por lá, ontem à tarde, as vozes de luto ecoavam pelas paredes de mármore do palácio, e os escravos preparavam no pátio uma pira funerária.
— Vamos à casa de nosso chefe aflito — convidou o outro, levantando-se. — E vejamos se o sacrifício que saudou o sol nascente não aplacou a severidade da morte.
Assim conversando, os dois senadores dirigiram-se à casa de Agatone.
Potito ouviu no diálogo dos dois anciãos a chamada de Deus para proclamar-lhe a glória. O poderoso nome de Jesus haveria de curar a mulher enferma, e muitos creriam nEle. O jovem teve um breve momento de hesitação em determinar como agiria, mas levantou-se mediatamente, e seguiu à distância os dois homens. Depois de passar por uma ou duas ruas principais, eles chegaram a uma mansão principesca. Uma escada de mármore, adornada com Estátuas de ouro e pedras preciosas, conduzia a um pórtico majestoso, circundado por uma cornija branca, esculpida em forma de laço; flores frescas, arranjadas em vasos etruscos de valor inestimável, exalavam no ar um doce perfume.
Os senadores entraram na casa com a liberdade própria dos amigos. Potito, que os seguia logo atrás, não se atreveu a sujar o assoalho de mármore polido com o seu calçado plebeu; os pobres não eram admitidos nos palácios dos grandes. Ele sentou-se nos degraus, e escondendo o rosto nas mãos, orou para que Deus lhe manifestasse a sua vontade, e enviasse sua misericórdia sobre aquela gente sem esperança.
Ele achava-se absorto em oração e santos pensamentos, quando uma voz aguda e penetrante, vinda do topo da escada, arrancou-o de sua meditação:
— Hei, rapaz! O que estás fazendo aí? Não é permitido aos mendigos sentar-se nestes degraus.
Potito olhou para o alto, e viu um eunuco vestido numa libré. Era um jovem arrogante, altivo, de talhe esbelto e efeminado.
— Dar-me-ias um copo d’água? — pediu o jovem Potito, humildemente.
O que há de mais sem valor que algumas gotas d’água? Contudo, quando oferecidas em nome do Senhor, que aprecia a caridade acima das demais virtudes, elas têm um preço incalculável.
— É estranho — ponderou o eunuco — que venhas aqui pedir água, quando há bicas das fontes mais puras da montanha espalhadas por toda parte… Acho que vieste aqui com outras intenções, mas estou de olho em ti.
— Sim — interrompeu Potito —, tu estás certo! Eu desejo água, mas não apenas água. Desejo também a tua fé no Senhor Jesus Cristo, para que haja paz e bênçãos de Deus sobre esta casa.
O eunuco, espicaçado com as palavras de Potito, perguntou: — Quem és tu? Não me lembro de ter-te visto na cidade antes. Qual o teu nome?
— Sou um servo do Senhor Jesus Cristo, o Redentor da humanidade, que pode curar o leproso e o paralítico, dar vista aos cegos, e ressuscitar mortos.
O eunuco ouviu com atenção; sabia que sua ama achava-se acometida por uma lepra mortal, e sem perda de tempo, perguntou a Potito se ele curava lepra.
— Sim! — assegurou o menino. — O meu Senhor a curará através de mim. Ele mesmo prometeu em seu evangelho: “Em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele há de passar; e nada vos será impossível” (Mt 17.20).
— Então, tu podes mesmo curar minha senhora? — indagou o eunuco, impaciente.
— Sim, se ela crer, o Senhor Jesus a curará.
— Ela te fará senhor de toda a sua riqueza.
— Ah, amigo! Não desejo prata nem ouro, nem riqueza de qualquer espécie. Anelo tão somente unir-lhe a alma a Jesus, na luz e no conhecimento da fé.
Estas últimas palavras não foram ouvidas pelo eunuco. Ele desaparecera mansão adentro, e correra ao quarto da ama com a liberdade desfrutada pelos eunucos. Com a respiração entrecortada, ele contou à matrona enferma que, sentado nos degraus de sua casa, havia um menino capaz de curar lepra. Ela ordenou-lhe que o garoto fosse trazido imediatamente à sua presença.
Potito foi conduzido por corredores esplêndidos, ornamentados com estátuas nuas e figuras que o faziam fechar os olhos em santo pudor. Ao entrar no aposento onde Quiriaca jazia em sua moléstia repugnante, Potito saudou: — Que a paz do Senhor Jesus Cristo esteja com todos.
A mulher enferma, deitada num diva carmesim, era atendida por duas ou três escravas, que seguravam flores frescas e abanavam grandes leques para refrescar o ambiente. O quarto era revestido por ricas tapeçarias, representando cenas mitológicas. No meio do aposento, havia uma linda lâmpada sobre um pedestal de mármore de primorosa escultura. Na mesa de cedro odorífero junto ao diva, via-se uma coleção de objetos que costumavam está sempre ao alcance das damas patrícias do primeiro século: um porta-jóias, um espelho, e um objeto com a forma de um estilete, usado para punir os escravos.
Quiriaca parecia avançada em idade, e horrivelmente desfigurada pela doença; as extremidades de seus pés e mãos já haviam caído, e ela tornara-se motivo de aversão a todos os que eram forçados a servi-la. A agonia de seu espírito era-lhe ainda pior que o sofrimento físico. Seu orgulho e vaidade achavam-se extremamente feridos; sentia-se evitada pelas outras matronas da cidade, banida das altas rodas, e condenada a arrastar-se em sua existência miserável, na solidão involuntária e na vergonha. Ao ouvir que um rapazinho estranho poderia curá-la, levantou-se com intensa alegria. A esperança, que havia muito tempo abandonara seu coração partido, retornou para consolá-la. No momento em que a porta se abriu para deixar entrar Potito, ela exclamou com animação:
— Oh, jovem! Cura-me, cura-me!
Ela sentiu-se tocada pela beleza e modéstia do rapaz, cuja fisionomia irradiava doçura celestial, enquanto seus olhos fixavam o assoalho. Erguendo educadamente a cabeça, e fitando a matrona, ele asseverou:
— Tu deves primeiramente crer, então tu e tua casa verão a boa obra.
— Oh! Eu creio, eu creio! — confessou a mulher, freneticamente. — Não há outro Deus, além do teu, que possa curar-me.
Potito ajoelhou-se. O silêncio era total. Diversos escravos e criados achavam-se agora reunidos no quarto, uma vez que o eunuco correra contar-lhes que a ama seria curada. Após uma pausa, Potito ergueu os braços, voltou os olhos ao céu, e orou em voz alta:
— Oh, Senhor Jesus Cristo, Rei e Redentor nosso! Tu mesmo dísseste aos teus discípulos: “Limpai os leprosos, ressuscitai os mortos”. Conceda-me, a mim teu servo, que a tua graça desça sobre esta mulher, a fim de que este povo possa ver que Tu és Deus, e que não há outro além de Ti.
Ele mal terminara a oração, quando uma luz brilhou sobre o corpo de Quiriaca. Ela estava curada. Toda a sua deformidade desaparecera. Ela saltou do diva e agarrou o espelho: sua pele estava mais limpa que o mais puro mármore de Carrara, tingida com o rubor das rosas. Os criados acercaram-se admirados; suas exclamações de alegria e surpresa enchendo o aposento de sons e confusão.
Quiriaca não pôde conter-se. Mensageiros foram despachados por toda a cidade para procurar seu esposo, chamar seus amigos, e anunciar as novas de alegria. Em poucos minutos, a casa, o pórtico, e a rua ficaram cheios de gente; o milagre era contado e recontado por milhares de línguas. Os Atos contam que o resultado deste milagre foi a conversão de metade da cidade (media civitatis).
Potito permaneceu por algum tempo para completar a grande obra iniciada por Deus. Entretanto, percebendo que lhe estavam prodigalizando honras e elogios, fugiu uma vez mais para o seu retiro favorito nas montanhas. Deus desejava que ele se preparasse para outros prodígios ainda maiores. Antes de deixar a cidade, mandou a Roma alguns de seus recém-convertidos mais confiáveis, para que comunicassem ao líder da igreja as bênçãos que Deus derramara sobre a cidade de Valéria. Um bispo e alguns pastores zelosos foram enviados a cuidar do rebanho. Através do esforço desses homens de Deus, toda a região ao redor abraçou a fé, e nunca a perdeu. A cidade de Valéria, há muito, deixou de existir; a bela, porém mal conservada, cidade de Cagliari fica próxima a suas ruínas.
Enquanto na Sardenha se passavam os eventos acima relatados, no palácio dos césares, em Roma, tinha lugar uma cena de confusão e pesar. A filha única do imperador Antônio, uma linda menina com o doce nome de Agnes, achava-se possuída por um demônio. Não ousei investigar as leis que regem estes terríveis julgamentos de Deus; para mim, estão envoltos num impenetrável mistério. Agnes era jovem demais para ser envolvida em culpa moral; seu maior crime pode ter sido o amor aos vestidos, ou uma desobediência momentânea. À sua volta, havia parricidas, assassinos, adúlteros, e canalhas capazes da mais profunda depravação que pode pesar na consciência humana; contudo, o raio tempestuoso que destrói o lírio pode deixar ileso o blasfemo. Não se pode dizer que é obra do acaso; com Deus, não há acaso. É antes o misterioso abraço da misericórdia, da justiça e do julgamento! O Espírito divino golpeia com uma das mãos, e salva com a outra. Estas visitações horrendas, tão medonhas em si mesmas, têm sido, invariavelmente, o início de ricas bênçãos espirituais. Tal foi o caso com a filha de Antônio.
O espírito mau torturava-a tanto, que ela tornou-se objeto de terror para todos os que a cercavam. Ela fazia as paredes de mármores ressoar com os guinchos mais horripilantes. A mesa, ela era levantada como que por mão invisível, e deixada cair com tal violência, que todos se admiravam por não se quebrarem os seus ossos frágeis. Num momento, estava calma e tranqüila; no outro, lançava-se sobre as criadas como uma louca, com fúria e violência, ou fazia em pedaços qualquer ornamento ao seu alcance.
O palácio imperial achava-se imerso em aflição; os médicos reais estavam aturdidos; não conheciam a doença nem o remédio. Em vão, o piedoso imperador oferecia o sacrifício diário no templo. Em vão, conduzia ao altar de Júpiter vítima após vítima: bois com chifres dourados, e guirlandas de flores. O Diabo ria através dos lábios de Agnes, e gloriava-se nos sacrifícios a ele oferecidos.
Finalmente, o Todo-Poderoso obrigou o demônio a dizer ao imperador que não sairia do corpo de sua filha enquanto o jovem Potito não chegasse, dando-lhe instruções de onde encontrá-lo. Antônio, acreditando que fosse uma resposta de seus deuses, ordenou a Gelásio, o prefeito da cidade, que fosse com cinqüenta homens buscar Potito, e o trouxessem a Roma.
Algumas semanas se passaram, e Potito compareceu diante do imperador. A curiosidade do soberano deixara-o ansioso para ver o único homem que poderia expulsar de sua filha o espírito mau; ele esperara ver algum mágico venerável do deserto egípcio, ou um cigano fatídico das margens do Nilo, ou então um sacerdote de alguma província mais favorecida pelos deuses. Qual não foi sua surpresa ao ver diante de si um rapazinho de treze ou quatorze anos, pobre e malvestido. Não obstante, brilhavam-lhe no semblante uma beleza e uma doçura que fizeram o imperador e todos os demais olhar para ele com admiração e deleite. Após um instante de silêncio, o imperador indagou:
— Quem e o que és tu?
— Sou um cristão.
— O que?! Um cristão?! — espantou-se o imperador, como se ouvira algo inacreditável. — Não conheces as ordens do soberano? Não sabes que todos os que pertencem a esta seita odiada devem morrer?
— Eu desejo morrer. — foi a branda resposta de Potito.
Antônio teria expressado sua animosidade contra os cristãos; pensou, porém, no sofrimento da filha, e ocultou e adiou a sua resolução, já tomada, de fazer o jovem sacrificar aos deuses, ou morrer. Dissimulou o tom de seu discurso, e insinuando adulações e recompensas, pensava obter do jovem cristão, primeiramente a cura da filha, e então, a gratificação de seu espírito cruel e fanático, sarcasticamente chamado de piedoso para com os deuses.
—Já ouvi falar de teu grande nome — mentiu o fraudulento imperador. — Podes mesmo curar minha filha? Se puderes, enriquecer-te-ei com muitos bens.
— Por que teus deuses não a curam? — perguntou Potito.
— Como ousas falar-me de modo tão desdenhoso?
Uma pergunta importuna a um imperador romano, lembrando-o de suas fraquezas, superstições e orgulho, era manifestação de desprezo.
— Bem — tornou Potito —, se a tua filha for curada, crerás tu no Deus em que creio? Após alguns segundos de hesitação, Antônio respondeu: — Crerei.
Era uma falsa promessa; ele não tencionava cumpri-la. Mas Deus, que lê os segredos do coração, fez com que Potito enxergasse a hipocrisia do imperador e o julgamento já preparado para ele. Encarando firmemente Antônio, o nobre menino falou com majestade e força:
— Imperador falso! Foste pesado na balança e achado em falta. Teu coração é empedernido e impenitente. Mas para que estas pessoas aqui presentes creiam em Deus, libertarei, em nome de Jesus Cristo, a tua filha do espírito que a atormenta. Que ela seja trazida.
A menina entrou na sala, carregada por alguns criados. Achava-se reduzida a um esqueleto; 0s olhos eram injetados e desvairados. Estava tão enfraquecida, que não poderia manter-se em pé; no entanto, os criados mal a podiam conter, forçando-a a permanecer diante do jovem servo de Deus. Ela tremia da cabeça aos pés, e ao avistá-lo, gritou aterrorizada: — É Potito!
Ele ordenou que ela silenciasse. Orou por um momento, e então falou em voz alta: — Espírito ímpio, ordeno-te, em nome de Jesus Cristo: deixa esta menina, que é uma criatura de Deus.
O Diabo atreveu-se: — Se me expulsares daqui, perseguir-te-ei até a morte.
Mas Potito, parecendo não notá-lo, aproximou-se de Agnes e a tocou. Imediatamente a menina foi arremessada ao chão com um grande impacto; o palácio tremeu, e o imperador e todos os presentes viram um vulto sair pela janela, deixando na sala um insuportável odor de enxofre.
Agnes jazia no assoalho, como morta. Potito curvou-se, tomou-lhe a mão magra e fria, e levantou-a. Ela recobrou imediatamente os sentidos, e a sua aparência mudou, como se estivesse apenas usando uma máscara. Sus faces encovadas adquiriram cor; os olhos azuis brilharam novamente com inocência; até seus cabelos, antes emaranhados e sem vida, pareciam agora mais lustrosos. O toque de Cristo mudou a emaciada e atormentada Agnes em uma criança tão vivaz e alegre quanto Eva ao caminhar, pela primeira vez, entre as flores do Éden. Os demônios nunca mais teriam poder sobre essa criança. Ela, agora, pertencia ao céu. O próprio Potito a batizaria diante de milhares de romanos, na arena do Coliseu. Antes, porém, estranhos acontecimentos teriam lugar.
Antônio não se converteu a Cristo. Depois de abraçar Agnes, e convencer-se de que a viçosa menina diante dele era mesmo a sua filha, bradou:
— Este menino é um mágico! Agradeço aos deuses por haverem curado a minha filha! Potito, que tremera ante aquela blasfêmia, atalhou: —Ai de ti, louco imperador! Presenciaste o milagre de Deus, e nem assim crês. Não foram os deuses que curaram a tua filha, mas o meu Senhor Jesus Cristo.
— Ainda persistes nesta linguagem tola e orgulhosa? Não sabes que sou o imperador, e que posso forçar-te a sacrificar aos deuses, ou mandar cortar-te em pedaços, em lenta tortura, ou ordenar que sejas devorado pelas bestas feras no anfiteatro?
— Não tenho medo de ti, nem de tuas ameaças. Meu Deus pode preservar-me.
— Aflige-me ver tua loucura. Tu me levas a punir-te.
— Ah, Antônio! Aflige-te por ti mesmo, pois te estás preparando para um terrível inferno, onde arderás com o teu pai, o Diabo, que te tem endurecido o coração.
Isto bastou para despertar a mal-disfarçada indignação do imperador. Levantando-se num assomo de cólera, ordenou que dois lictores agarrassem o rapaz e o açoitassem. Não obstante o murmúrio de piedade ouvido em cada canto da sala, e as lágrimas suplicantes de Agnes, o jovem Potito foi despido e açoitado com varas, até quase morrer. A única expressão que lhe escapou dos lábios foi: — Louvado seja Deus.
Apesar de sua carne haver sido lanhada, o Todo-Poderoso aliviou-lhe a dor, e as pesadas varas desceram como palha sobre seus ombros e costas.10 Após haverem-no fustigado desse modo, o imperador mandou que parassem, a fim de pedir ao jovem que sacrificasse aos deuses.
— A que deuses? — indagou Potito.
— Então não conheces Júpiter, Minerva e Apoio?
— Vejamos que espécie de deuses são eles, para que lhes sacrifiquemos — sugeriu Potito. O imperador muito se alegrou com esta fala. Ordenou imediatamente que o jovem fosse vestido e levado ao templo de Apoio. Supunha ele haver conquistado a fé do menino, e o levado a apostatar.
Uma grande multidão seguiu-os ao templo; a notícia da cura da filha do imperador através de um menino desconhecido já se espalhara pela cidade. Alguns tinham vindo para ver a garota curada; outros, pela curiosidade a respeito de Potito. Em meio à multidão, que os Atos afirmam chegar a dez mil,11 havia muitos cristãos orando para que Deus desse forças ao seu servo, e ele pudesse glorificar-lhe o nome.
Quando chegaram ao suntuoso templo de Apoio, no Palatino, a multidão abriu alas para deixar passar o imperador e seu séquito. Atrás deles vinha Potito ladeado pelos dois lictores. Seus olhos iam postos no chão; não olhava para ninguém. Seguia absorto em pensamentos de oração. Chegando ao pé da estátua, ele ajoelhou-se e cruzou as mãos no peito.
O silêncio na multidão era palpável. De repente, eles viram a estátua mover-se, e cair com um formidável estrondo, esfacelando-se em mil pedaços, tão pequenos, que mais pareciam poeira que fragmentos de um deus colossal.
Potito, que destruíra a imagem sem mover um dedo, apenas com a oração que sua alma fizera a Deus, pôs-se animadamente em pé, e virando-se ao imperador, indagou diante do povo:
— São estes os teus deuses, Antônio?
— Menino, tu me enganaste! — gritou o enfurecido imperador. — Com a tua mágica, destruíste o deus.
— Mas se ele era deus – ironizou Potito —, não podia defender-se a si mesmo? Confuso, derrotado, e ainda endurecido, o imperador ordenou que o levassem à prisão, até que um terrível instrumento de morte lhe fosse especialmente preparado. Para evitar-lhe a fuga, mandou que um ferro de cinqüenta quilos fosse posto ao redor de seu pescoço. Mas o Deus a quem Potito servia enviou um anjo para consolá-lo no cárcere; o anjo tocou o ferro, e ele derreteu-se como cera. Os guardas viram a cela iluminada, e ouviram uma doce música que soou até o romper do dia.
Antônio determinara que o jovem Potito fosse exposto às feras do Coliseu, mas primeiro, para satisfazer-lhe os desejos de vingança, o menino seria torturado. Enviou pregoeiros através da cidade, convocando o povo a reunir-se no anfiteatro, no dia seguinte. Parecia que Deus fortalecera a voz dos arautos, para que a população inteira pudesse testemunhar o seu poder, através do humilde rapazinho que ele escolhera para representá-lo. No dia seguinte, o anfiteatro lotou com gente de todas as classes, desde os senadores à-ralé.12 O imperador compareceu com toda a corte. Ao seu lado via-se uma graciosa menina vestida de branco. Todos os olhos estavam fixos nela. Quando entrou, foi saudada por um retumbante grito de congratularão. Ela agradeceu a simpatia do público, acenando com a mão. A menina era Agnes. Ela não tinha consciência do papel que representaria no espetáculo a seguir…
Desde o momento em que fora liberta, Agnes desejou ser cristã. Ela sentia tanta gratidão para com o jovem que fora o instrumento de Deus em sua libertação, que faria qualquer coisa que ele lhe pedisse. Seu coração palpitava de amor por ele; sua riqueza, seu afeto, ela própria, tudo seria para ele, se ele consentisse em aceitar. Ademais, estava convencida da verdade do cristianismo. Além do milagre realizado em seu benefício, ela estivera presente quando a estátua de Apoio esmigalhou-se em resposta à oração de Potito, e imediatamente pedira ao pai que lhe permitisse adorar ao Deus dos cristãos.
Ele repreendera-a severamente, e ameaçara queimá-la viva, caso ela se atrevesse a invocar o nome do Deus verdadeiro. A corajosa criança já resolvera deixar o palácio do pai, e ir viver com os cristãos nas cavernas. Todavia, isto não lhe seria exigido. Deus a tomara em suas mãos. Mais alguns minutos, e Agnes seria uma cristã.
A cena passada no Coliseu é uma das mais estranhas que tivemos de registrar. O anfiteatro estava repleto. Nem todos aplaudiam a cruel política do imperador. Alguns milhares ali presentes não aprovavam a crueldade e o fanatismo que condenara o menino inocente a ser devorado pelas feras. Os lamentos, os gritos, e assovios,13 que se erguiam de cada bancada, diziam ao imperador hipócrita que a sua falsa piedade aos deuses o levara longe demais.
Ouve-se o toque da trombeta, e Potito é introduzido na arena. Seminu, acorrentado, e rodeado pelos lictores, ele é trazido perante o imperador. Ele anda com os braços cruzados sobre o peito, absorto em oração. Parece mais belo que nunca. O que significa o profundo murmúrio que rola pelo anfiteatro como uma vaga do oceano? O que significam as expressões de empatia e piedade no templo das Fúrias – o teatro de imolação e derramamento de sangue? Antônio compreende-o bem, mas a devoção aos deuses incita-o, e endurece-lhe o coração contra a misericórdia. Potito deve morrer.
Quando o silêncio foi restaurado, Antônio provocou: — Bem, jovem, vês onde estás?
— Sim — respondeu Potito —, estou na terra de Deus.
— Hah! Estás em minhas mãos, agora, e eu quero ver o Deus que vai tirar-te delas! Potito deu um sorriso sarcástico, e depois falou calmamente: — Como tu és simplório,
Antônio! Um cão é melhor que tu, porque tem mais conhecimento.14
Antônio ordenou que o menino fosse estirado na roda, com tochas encostadas às laterais do corpo.
O jovenzinho fiel foi esticado sobre uma armação de madeira, e seus pés e mãos atados Por cordas a um molinete. Tratava-se da roda de tortura, um antigo instrumento de suplício. A cada vez que esta roda girava, o corpo da pessoa era esticado algumas polegadas além de sua extensão natural, e quando o estiramento tornava-se demasiado, os ossos saiam de sua cavidade, e a carne partia-se no mais excruciante tormento, que às vezes levava à morte. Para acrescentar sofrimento, tochas acesas eram aplicadas aos lados do corpo, para que a fina camada que recobre as costelas fosse consumida em pouco tempo.
Enquanto Potito era submetido a esta tortura, dava a impressão de estar cheio de alegria. O povo não podia entender. Em todo o anfiteatro ouviam-se expressões de admiração. “Como ele suporta isto?” “Que coragem! Que resistência! Ele sequer reclama!” “Certamente, o Deus dos cristãos está com este menino!”
O imperador achou que tivesse, finalmente, subjugado Potito. Mandou que o tirassem da roda, e perguntou-lhe o que preferia: sacrificar aos deuses ou morrer? A impressão que se tinha era que Potito estivera deitado num leito de rosas. O Todo-Poderoso anulara a dor, e preservara-lhe os membros de qualquer deformação. Uma vez mais Potito zombou das ameaças do imperador, e desafiou-lhe os esforços para torturá-lo ou tirar-lhe a vida. Antônio ordenou então que se soltassem algumas feras. Elas entraram saltando na arena, mas esquecendo sua ferocidade nativa, puseram-se a lamber os pés do garoto.15 Reuniram-se à sua volta, e deitaram-se na areia, em diferentes posturas, formando um círculo ao seu redor.
A cena era ao mesmo tempo singular e bela; Potito ajoelhado no meio das bestas selvagens, com as mãos e os olhos levantados ao céu, em oração. Até parecia que os animais temiam fazer barulho, para não perturbá-lo em sua comunicação com Aquele que era o Criador e Senhor tanto do menino quanto deles. A surpresa do imperador foi além do que se pode contar, e a pequena Agnes derramava lágrimas de alegria. Durante alguns minutos, a multidão fitou a cena com a respiração suspensa. Então, como que de comum acordo, rompeu em gritos e aplausos, que ressoavam como trovão pelas arcadas do anfiteatro.
Quando o silêncio foi restaurado, Potito levantou-se e dirigiu-se ao imperador; os animais o seguiram, e conservaram-se junto dele, como se lhe apreciassem a companhia. Dando palmadinhas na cabeça monstruosa de um leão, ele sorriu para o imperador:
— E agora, quais são tuas ameaças? Não vistes que tenho um Deus que pode livrar-me de ti? Este Deus é Jesus Cristo, a quem eu sirvo.
Antônio estava humilhado, envergonhado, exasperado. Não deu atenção à pergunta de Potito; mandou que alguns gladiadores entrassem na arena e o assassinassem. O instante que se seguiu foi ainda mais extraordinário que o que terminamos de relatar…
Os gladiadores entraram para matar Potito. Quatro brutamontes o cercaram. Desembainharam as espadas, mas… Ora vejam! Não puderam tocá-lo! Um anjo estava lá para desviar-lhes os golpes, que foram desferidos inofensivamente no ar. Tentaram com todas as forças atingir Potito, mas sem efeito. O menino permanecia sorrindo no meio deles, mais parecendo um espectro que um ser humano.16 Quando os gladiadores ficaram tão cansados, que não mais podiam manejar a espada, desistiram da tarefa infrutífera, e saíram da arena sob os assovios e vaias do populacho.
Todavia, as maravilhas ainda não haviam terminado. O empedernido coração do imperador achava-se mais tenebroso que nunca. Os milagres que falharam em convencê-lo despertaram nele uma raiva ainda maior. Como se um demônio estivesse sentado em seu lugar, ele determinou atacar mais uma vez a vida do santo menino. Os convites da graça, tantas vezes rejeitados, aprofundam a culpa e a cegueira do pecador endurecido. Cada milagre divino operado através de Potito fazia Antônio gritar mais e mais que era por meio de mágica e bruxaria que o menino produzia aqueles efeitos.
O mesmo espírito caracteriza a incredulidade dos dias atuais. Milagres tão claros quanto a luz do sol, incontestáveis como a própria existência, são atribuídos a artifícios sacerdotais, alucinações, e fraudes.
Houve grande comoção entre o povo. Gritos de toda parte injuriavam o imperador. Estavam todos abismados diante de sua derrota, e as censuras que lhe gritavam aos ouvidos levaram-no ao desespero. Ordenou que trouxessem outro instrumento de tortura, que pudesse vencer Potito. Agora, porém, as coisas estavam totalmente viradas contra o imperador, e por isto ainda temos de registrar neste capítulo um dos mais extraordinários episódios já passados no Coliseu.
0 instrumento preparado era uma espécie de torquês com dois grandes cravos, projetados para atravessar a cabeça e encontrar-se no cérebro, de modo que não havia possibilidades de vida após a aplicação desta tortura. Quando a turba viu os executores entrando na arena com o aparelho, silenciou e debruçou-se à frente, ansiosa para ver o resultado.
Potito ofereceu voluntariamente a cabeça aos executores. Quando os cravos encostaram-lhe no crânio, ele orou em alta voz para que Deus removesse o instrumento de sua cabeça e o pusesse na de Antônio. Mal terminou de orar, a torquês foi levantada de sua cabeça, e carregada, como que por mão invisível, à cabeça do imperador.17 O espanto e as risadas encheram o anfiteatro.
A desordem durou um bom tempo. Quando voltaram a silenciar, ouviram o imperador gemendo de dor. Os atendentes, reunidos em tomo dele, tentavam inutilmente remover os cravos. Ele contorcia-se e debatia-se em agonia de morte. Os senadores e cortesãos sentiam-se consternados por não saberem o que fazer. Finalmente, já agonizando, Antônio bradou:
— Oh, salva-me servo de Deus! Salva-me. Sei que teu Deus é poderoso. Oh, livra-me desta dor terrível!
— Por que teus deuses não te livram, como o meu Jesus me livrou? — espicaçou Potito.
— Clemência, jovem, clemência! — suplicou o imperador. — Estou morrendo! Aterrorizados, os senadores e cortesãos imploraram a Potito que salvasse o homem. Agnes também, num impulso de amor filial, torcia as alvas mãozinhas, suplicando pelo pai. Na multidão, o silêncio era sepulcral. Finalmente, movido de compaixão pelo vil imperador, Potito gritou:
— Está bem, eu o ajudarei, se ele permitir que Agnes seja cristã.
O imperador assentiu. Antes que a permissão fosse formulada, Agnes correu como se voasse pelas arquibancadas, e chegou ao centro da arena, onde ajoelhou-se junto a Potito, sem fôlego, e incapaz de falar, tão grande era a sua alegria. Com os braços para o ar, e lágrimas descendo-lhe pela face, pediu:
— Eu quero ser batizada! Por favor, batiza-me!
Potito pediu que trouxessem uma boa quantidade de água. Enquanto esperava, dirigiu à amável criança algumas palavras, e certificando-se que ela tinha fé e conhecimento do que estava fazendo, batizou-a diante dos milhares de espectadores. No momento em que a menina passava pelas águas batismais, os cravos que furavam o crânio de Antônio foram-lhe retirados da cabeça pela mesma mão invisível que lá os pusera, e arremessados com violência à arena, ainda manchados de sangue. A única coisa que se ouvia eram as aclamações: “Grande é o Deus de Potito!”
O imperador sentia-se atônito. Parecia-lhe haver acordado de um pesadelo; o anfiteatro girava à sua volta, e o seu coração batia com medo e raiva. Mal se recobrara do choque, quando viu Potito trazendo Agnes em sua direção. O demônio que lhe regia o espírito pervertido instigou-o a desafogar sua raiva impotente sobre o rapazinho. Todavia, refreado por um poder invisível, foi forçado a ouvir Potito falar. Foram suas últimas palavras ao impiedoso Antônio. Foram poucas palavras, mas poderosas e proféticas.
— Antônio, imperador do grande povo romano! Ouve as palavras de um servo de Jesus Cristo. Frustrei-te em tudo quanto preparaste para mim. Agora, tudo terminou. Embora perseveres em tua impiedade, não perderei minha coroa. Esta coroa sô será minha através da espada, e no lugar que eu indicar. A graça de Deus alcançou hoje esta criança, trazendo-a à luz e ao conhecimento da verdade. Ai de ti se interferir na sua fé. No momento em que o fizeres, ela será tirada de ti. Chame teus lictores, e que eles não demorem. Almejo unir-me ao meu Senhor Jesus Cristo.
E então, voltando-se para Agnes, ele concluiu: —Adeus, minha criança! Sê fiel à graça que hoje recebeste.
O imperador, ainda enlouquecido pela derrota e vergonha que sofrerá, deleitou-se com a esperança de acabar com o jovem importuno, e ordenou que Gelásio, o prefeito, cuidasse para que a sentença fosse executada conforme Potito desejava. Ele foi levado do anfiteatro sob o murmúrio da multidão, encerrando assim um dos mais extraordinários episódios do Coliseu.
Os Atos dizem que cerca de duas mil pessoas foram convertidas. Todos voltaram ao lar emocionados com o milagre presenciado, e sentindo compaixão pelos poderosos, porém perseguidos, cristãos. Muitas semanas depois, aquele surpreendente acontecimento no Coliseu ainda era tópico das conversas nos banhos públicos e nos bancos do Fórum. Os pagãos empenhavam-se em explicar aqueles mistérios pela mágica; os cristãos cantavam hinos de gratidão a Deus pela manifestação de sua glória.
Poucos dias depois, Gelásio retornou com seu grupo de soldados, trazendo a notícia da morte de Potito, que fora decapitado.
O lugar exato de seu martírio é desconhecido. Os Atos mencionam um lugar chamado Miliano, em Apulia, mas qualquer vestígio deste nome perdeu-se faz tempo. Mesmo o rio Banus, cujas margens são citadas como o lugar do martírio, é desconhecido.
Embora alguma dúvida possa ser lançada sobre o local onde Potito sofreu o martírio, não se questiona a autenticidade dos Atos. Eles são apresentados em epítome em quase todos os martirológios; também em Ferrari Micaeli Mônaco, César Eugênio Carraciolo, e De Vipera (S.J.).
Os Bolandistas apresentam duas edições de sua vida nos Atos, citadas dos manuscritos preservados no monastério de São Martin das Tours, e do manuscrito preservado no convento erigido em sua memória, em Nápoles, pelo bispo Severo. No último manuscrito há alguns versos em latim, de data muito antiga, referindo-se a Potito. Seguem-se algumas estrofes:
“0 Stella Christi fulgida,
Potite, martyr inclyte,
Obscura culpae nubila
A mente nostra discute.
“Tu, clarus inter martyres,
Fulges ut inter sidera
Sol, ac ut inter candida
Ligustra candent lilia.
“Luces ut ardent lampada,
Humana lustrans pectora,
Ut sol per orbem spargens,
Humana siccans vulnera.
“Non sic, Potite, cynnama
Attrita sperant moribus,
Ut tu modestus florida
Aetate flagras saeculo.
“Post clara mortis funera,
Illustris inter angelos,
Tanto refulges lumine
Quanto per orbem nomine”.
No século XI, os restos mortais deste mártir foram descobertos, junto com outros, sob uma antiga igreja da Sardenha. Apesar de não haver nome no sarcófago, não há dúvida quanto à identidade: junto a Potito estava o instrumento aplicado à sua cabeça no Coliseu, e milagrosamente transferido à de Antônio; não houve na Sardenha outro mártir punido dessa forma. Ademais, já existia uma tradição de que Potito fora enterrado sob aquela igreja. Foi na procura de seu corpo que se deu esta descoberta. Jacobus Pintus, que fez um relato desta descoberta em seu quinto livro De Christo Crucifixo, afirma: “Noutros lugares, outros corpos de mártires foram descobertos, também com as marcas do martírio. Dentre os instrumentos de tortura especialmente notáveis e interessantes, encontrados em muitos sarcófagos, estão os cravos que furavam da cabeça ao pescoço. E embora não haja epitáfio para recordar o nome do mártir, é sabido que, além de Potito, não houve na Sardenha outro mártir que sofresse desse modo. Seus restos mortais, como visto em todos os martirológios, foram trazidos da Itália para a Sardenha”. — Bolandistas, 13 de janeiro.
0 leitor, certamente, estará ansioso para saber da história posterior de Agnes. Ela não foi destinada a receber a coroa do martírio. Seus poucos anos de vida foram passados em paz, no palácio imperial.
Antônio receava interferir em sua fé; ele via na filha algo sobrenatural, que o fazia olhar para ela com temor e veneração. Toda vez que ela lhe atravessava o caminho, ele pensava na última e terrível advertência de Potito. A menina vivia no palácio, e por sua virtude e exemplo heróico, provava a natureza de sua fé tão perfeitamente como se estivesse brincando com leões na arena do Coliseu.
Agnes passou seus dias sem se deixar macular pela luxúria e a vaidade da corte paga. Como um lírio recentemente colhido, flutuando nas águas turvas do Tibre, ela foi carregada para o grande oceano da eternidade, sem uma mancha de sangue ou vício em sua vida restaurada através do jovem sardo.
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1 Porro cur morientes apud vos imperatores semper inmortalitati consecrare dignamini, producentes quempiam qui jurejurando confirmei vidisse se e rogo ascendere in coeium srdentem Caesarem?”
2 “Cest une tradition constante de tous lês siecles que lê Babylone de Saint jean c’est 1’ancienne Rome.” Bossuet, Pref. Sur 1’Apocal,VII.
3 Estas reflexões de Marco Aurélio são classificadas entre as obras filosóficas do passado. São belamente escritas, e possuem grande mérito. Podem ser encontradas em quase todas as grande bibliotecas.
4 “ALEXANDER MORTUS NON EST SED VIVIT SUPER ASSTRA ET CORPUS IN HOC TÚMULO QUIESCIT VITAM EXPLEVIT, CUM ANTONINO”.
5 “Encontramos num manuscrito, em Nápoles, que a sua idade era treze anos.
6 Apresentamos a conversa a partir de sua língua original, com algumas leves alterações, adequando-a às nossas expressões idiomáticas.
7 Arfa é um nome raramente encontrado na mitologia paga. Devemos nos lembrar que havia deuses particulares, bem como deuses públicos. Na casa de cada patrício havia uma câmara chamado larário, onde eram postos os ídolos da família, que recebiam o nome de penates. Consistiam de estátuas de todos os tamanhos e formas, e chegavam a várias centenas.
8 “Et nullum dolorem caedentium sentio”. – Atos.
9 “Erat enim turba hominum quase decem millia”. – Atos.
10 “Et impletum est amphitheatrum populo”. – Atos.
11 “É estranho o fato de os assovios serem empregados no Coliseu como um sinal de descontentamento. Não é o que ocorre, geralmente, nos teatros italianos da atualidade.
12 “Melhor cst canis quam tu co quia plis sapit”. – Atos.
13 Ad cujus vestigia itidemferae venientes deposita omniferius rabie et occurrentes humiles capite osculabanterpedes ejus, etc. – Atos.
14 Nam sicut tentabant quodeumque ex membris ejus abscindere ita Domini virtus opitulabatur ut non ad exiguwn attingere eutn valebant. – Atos.
15 “Et fixit eum in caput Antonini imperatoris”. – Atos.
16 “O Martirológio Romano diz que foi na Sardenha; o mesmo afirma Barônio, ano 154. Somos inclinados a seguir esta opinião como a mais provável, especialmente por haverem os seus restos sido encontrados sob uma igreja que lhe leva o nome, próximo à Cagliari.
Do livro: Mártires do coliseu