Novas imagens divulgadas pelo Laboratório de Investigação Humanitária da Escola de Saúde Pública de Yale indicam que os massacres continuaram dentro e ao redor da cidade sudanesa de El-Fasher, em Darfur, tomada há quase uma semana pelo grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (FAR), em guerra com o Exército do Sudão há quase três anos. Neste sábado, autoridades europeias descreveram a situação no país como “apocalíptica” e “horrível”.
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— O Sudão vive uma situação absolutamente apocalíptica, (é hoje) a maior crise humanitária do mundo — afirmou o ministro das Relações Exteriores alemão, Johann Wadephul, acrescentando que as FAR “prometeram publicamente proteger os civis e serão responsabilizadas por essas ações”.
Wadephul fez a afirmação em uma conferência no Bahrein ao lado de seu homólogo jordaniano, Ayman Safadi, e da ministra das Relações Exteriores britânica, Yvette Cooper, que também condenaram a violência no Sudão. Cooper afirmou que Londres fornecerá cerca de US$ 6,6 milhões (R$ 35,48 milhões) em ajuda humanitária a Cartum. O Reino Unido já fornece 120 milhões de libras ao país.
A chanceler britânica enfatizou que os relatos recebidos sobre o conflito nos últimos dias “são verdadeiramente horríveis”:
— Atrocidades, execuções em massa, fome e o uso devastador do estupro como arma de guerra, com mulheres e crianças sofrendo o impacto mais severo da maior crise humanitária do século XXI.
Após um cerco de 18 meses, que deixou a população em estado de fome, os milicianos das FAR, chefiada pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, tomaram a cidade de El-Fasher no domingo passado. A captura significou a expulsão do Exército sudanês, liderado pelo comandante e líder de fato do Sudão, Abdel Fatah al-Burhan, de seu último bastião na vasta região ocidental de Darfur, palco de um genocídio há 20 anos.
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Al-Burhan e Dagalo eram aliados durante a deposição do governo civil em 2021, mas romperam após divergências sobre a integração dos paramilitares à tropa regular e o futuro político do país.
Desde a queda da cidade, surgiram relatos de execuções sumárias, violência sexual, ataques a agentes humanitários, saques e sequestros. O Exército denuncia o assassinato de 2 mil pessoas pelos milicianos durante avanço das FAR. Sobreviventes que chegaram à vizinha Tawila, situada a 70 km a oeste, também relataram à AFP assassinatos em massa, crianças baleadas na frente de seus pais e civis espancados e roubados enquanto fugiam. As telecomunicações continuam em grande parte interrompidas.
— No sábado [25 de outubro], às 6 da manhã, os bombardeios eram muito intensos (…) Depois de uma hora, sete combatentes das FAR entraram em nossa casa. Eles tiraram meu telefone, revistaram até minha roupa íntima e mataram meu filho de 16 anos — relatou esta semana Hayat, mãe de cinco filhos.
Husein, outro sobrevivente, disse que “a situação em El-Fasher é terrível”.
— Há cadáveres nas ruas e ninguém para enterrá-los — afirmou.
Perigo iminente
Um novo relatório do Laboratório de Yale, publicado na sexta-feira, 31, indicou que as imagens de satélite mais recentes sugerem que a maioria da população pode estar “morta, sequestrada ou escondida”, uma vez que não se observam “grandes movimentos” de civis fugindo.
Entre segunda e sexta-feira, o laboratório identificou pelo menos 31 pontos — em bairros, em um campus universitário e em instalações militares — com elementos que podem indicar corpos humanos. “Os indícios de que os massacres continuam são claramente visíveis”, afirmaram.
Imagens publicadas pelo laboratório em 27 de outubro mostram “evidências de assassinatos em massa contínuos”. Um diretor do estudo afirmou à agência francesa AFP que marcas nas imagens eram “consistentes com corpos humanos adultos” e que a descoloração observada no solo podia indicar “poças de sangue”.
A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) juntou-se às preocupações e disse temer que “um grande número de pessoas” continue em perigo de morte em El-Fasher.
— O número de pessoas que chegaram a Tawila é muito baixo (…) Onde estão essas pessoas desaparecidas, que sobreviveram a meses de fome e violência em El-Fasher? — questiona Michel Olivier Lacharité, responsável pelas operações de emergência da MSF, acrescentando: — Pelo que os pacientes nos dizem, a resposta mais provável e assustadora é que essas pessoas morreram ou foram detidas e perseguidas quando tentavam fugir.
As Nações Unidas afirmam que cerca de 65 mil pessoas fugiram da localidade, mas dezenas de milhares continuam presas na região. Cerca de 260 mil pessoas estavam lá antes do ataque final dos milicianos.
Prisão de combatentes
As FAR afirmaram em comunicado divulgado na noite de quinta-feira ter detido vários combatentes acusados de atrocidades e comprometeram-se a exigir responsabilidades a “qualquer pessoa que tenha cometido um erro”. Na nota, o grupo também alegou respeitar “a lei, as regras de conduta e a disciplina militar” e informou ter iniciado investigações para levar os combatentes à Justiça. Entre os presos está o comandante Abu Lulu, um dos paramilitares que aparecem em vídeos gravados em El-Fasher cometendo execuções.
Mas o subsecretário-geral das Nações Unidas para Assuntos Humanitários da ONU, Tom Fletcher, questionou se os paramilitares estão realmente decididos a investigar os crimes relatados. Em discurso perante o Conselho de Segurança, Fletcher também pediu aos países-membros da organização que parassem de armar as FAR, sem citar nominalmente o país responsável.
De acordo com relatórios da ONU, os milicianos receberam armas e drones dos Emirados Árabes Unidos, o que Abu Dhabi nega. Ao longo da guerra, múltiplas fontes indicaram a presença de forças mercenárias, incluindo da Colômbia e do grupo russo Wagner, combatendo ao lado das FAR. Por sua vez, o Exército contou com o apoio do Egito e Irã, segundo a agência de notícias Reuters, e há indícios de colaboração por parte da Arábia Saudita e da Turquia.
Tanto o Exército quanto as FAR — derivadas das milícias árabes Janjaweed acusadas de genocídio em Darfur há duas décadas e responsabilizadas por massacres contra a tribo masalit, que deixaram até 15 mil mortos — foram acusados de crimes de guerra desde o início do conflito, há mais de dois anos e meio. Os EUA já determinaram anteriormente que as FAR cometeram genocídio em Darfur contra determinados grupos étnicos.
A captura de El-Fasher dá aos paramilitares o controle total das cinco principais cidades de Darfur e divide o Sudão em um eixo leste-oeste, já que o Exército regular controla o norte, o leste e o centro do país. Funcionários da ONU alertaram que a violência está agora se espalhando para a região vizinha de Kordofan, com relatos que apontam para “atrocidades perpetradas em grande escala” pelas FAR.
Fonte: G1.
