A República Popular da China (RPC) vê Taiwan como uma província rebelde e quer, mesmo que seja à força, “reunificar” a ilha ao continente. Taiwan, porém, é um Estado soberano de facto, com uma Constituição, Forças Armadas e partidos políticos próprios, e a maioria da população não quer uma união com a China.
Esse conflito, que já dura mais de 70 anos e se acirra a cada visita de representantes dos Estados Unidos a Taiwan, ou vice-versa, ou com manobras militares chinesas no Estreito de Taiwan, tem potencial para dar origem a uma guerra, que poderia opor a China aos EUA.
Qual a origem do conflito?
A milenar China Imperial acabou em fins de 1911, e no primeiro dia de janeiro de 1912 foi proclamada a República da China, encerrando 2 mil anos de história imperial.
Não durou muito para que a jovem e fragmentada república mergulhasse na guerra civil, que opôs os nacionalistas do partido Kuomintang (KMT) e os comunistas liderados por Mao Tsé-Tung.
Os nacionalistas, sob a liderança do generalíssimo Chiang Kai-shek, haviam inicialmente conseguido criar um governo tendo como capital provisória Nanking.
Os dois lados chegaram a unir forças contra os japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial, mas em 1945 as divergências entre ambos se impuseram e a guerra entre eles recomeçou.
Os comunistas venceram o conflito, em 1949, e proclamaram a República Popular da China no dia 1º de outubro.
Derrotados, os partidários do KTM fugiram para a ilha de Taiwan, que havia voltado a fazer parte da República da China em 1945, com a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, e era desde então controlada por eles.
A partir daquele momento havia duas Chinas: a comunista República Popular da China, com o governo em Pequim, e a nacionalista República da China, com a capital provisória em Taipé e liderada pelo KTM.
O líder do KTM, Chiang Kai-shek, manteve viva a República da China em Taiwan com mão de ferro. O KTM governou sob lei marcial de 1949 a 1987. Só nos anos 1980 o filho dele, Chiang Ching-kuo, abriu o país para a democracia. As primeiras eleições legislativas livres ocorreram em 1992, e a primeira eleição presidencial, em 1996.
Taiwan é ou não parte da China?
Para o Partido Comunista Chinês (PCC) a resposta é clara e incontestável: Taiwan é parte da China. E o Livro Branco lançado em 2022 acrescenta: “Taiwan pertence à China desde a antiguidade”.
Na verdade não é bem assim. O domínio chinês sobre Taiwan começou em fins do século 17, na dinastia Qing, e durou até 1895, quando Taiwan foi anexada pelo Japão após a derrota dos chineses na Primeira Guerra Sino-Japonesa. Taiwan só passou a ser província chinesa no fim do século 19. A República Popular da China, fundada em 1949, jamais exerceu o poder na ilha.
Taiwan é de facto um Estado independente, com uma Constituição, um governo eleito de forma democrática, suas próprias Forças Armadas e passaportes próprios. Na prática, só falta mesmo o reconhecimento internacional por outros Estados.
Oficialmente, o governo em Taipé se considera, até hoje, o sucessor da República da China, fundada em 1912 – até meados dos anos 1970, até mesmo pretendia retomar o território continental dos comunistas.
Hoje a maioria dos cidadãos da ilha se considera exclusivamente taiwanesa, e apenas uma pequena minoria ainda se vê como exclusivamente chinesa. Um terço se vê como taiwanês e chinês. Uma união com a China comunista é impensável para a maioria dos cidadãos de Taiwan. A maioria defende a manutenção do atual status quo.
Entre os dois maiores partidos políticos, o KTM e o DPP, as posições são divergentes. O KTM não apoia a independência de Taiwan (que vê como “a única China”) e defende relações com a República Popular da China, apesar de as recentes derrotas em eleições terem enfraquecido essa posição dentro do partido. Já o DPP é favorável à existência de Taiwan como uma nação independente.
Há países que reconhecem Taiwan como um Estado?
Sim, mas são cada vez menos. Apenas 13 Estados mantêm relações diplomáticas com Taiwan, entre eles o Vaticano e, na América do Sul, o Paraguai. O número caiu drasticamente nos últimos anos devido à forte pressão de Pequim.
Ou seja, a maioria dos Estados do mundo não considera Taiwan um Estado soberano – entre eles estão os Estados Unidos, o Brasil e a Alemanha.
Taiwan também não é membro das Nações Unidas. Uma exceção notória entre organizações internacionais é a Organização Mundial do Comércio (OMC). Em meio à pandemia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não permitiu que Taiwan, que teve uma das melhores respostas à disseminação do vírus nos dois primeiros anos da pandemia, participasse de sua assembleia como observador, por pressão de Pequim.
O isolamento diplomático de Taiwan começou em 1971. Naquele ano a Assembleia-Geral da ONU reconheceu a República Popular da China como representante única da nação chinesa. Taiwan deixou de fazer parte da Organização das Nações Unidas, da qual era membro fundador.
A República Popular da China exerce enorme pressão diplomática sobre países em todo o mundo para não reconhecerem Taiwan como um Estado independente. Como pré-requisito para manter relações diplomáticas com um país, Pequim exige deste país que não reconheça Taiwan, que considera uma província rebelde.
Qual a posição dos EUA?
O presidente Richard Nixon iniciou a aproximação diplomática com Pequim em 1971, com o intuito de ter Mao Tsé-Tung ao seu lado contra a União Soviética.
As relações diplomáticas com a República Popular da China foram estabelecidas em 1979, quando os EUA também romperam relações formais com Taiwan, que não reconhecem mais como um Estado soberano. Um tratado de mútua defesa entre EUA e Taiwan também foi encerrado.
Os Estados Unidos reconhecem que o governo da República Popular da China é o único governo legal da China. Porém, os EUA não cederam à demanda pelo reconhecimento da soberania de Pequim sobre Taiwan. Em vez disso, os Estados Unidos aceitam a posição chinesa de que existe apenas uma China e que Taiwan é parte dessa China.
No texto em inglês, a palavra usada é acknowledge e não recognize, e congressistas e diplomatas insistem que há uma diferença entre aceitar e reconhecer.
Em resumo, os EUA reconhecem que Pequim é o único governo da China, mas apenas aceitam a posição da República Popular da China de que Taiwan é parte da China. Em decorrência disso, os Estados Unidos mantêm relações diplomáticas com Pequim e apenas relações informais com Taipé.
Também em 1979, o Congresso dos EUA aprovou uma lei, a Taiwan Relations Act (TRA), que redefine as relações com a ilha, que continuam de maneira informal, mas mesmo assim fortes, e autoriza a venda de armamentos modernos para garantir a segurança de Taiwan.
Desde então, as sucessivas administrações dos EUA mantiveram uma posição ambígua baseada nessa interpretação da política “Uma só China”. Essa “ambiguidade estratégica”, como é chamada, ajudou a manter a estabilidade no Estreito de Taiwan, uma das regiões mais militarizadas do mundo.
Pode haver uma guerra?
Sim, pois a República Popular da China vê Taiwan como uma província rebelde e já deixou claro que busca a “reunificação”, se necessário à força. E essa guerra pode se tornar uma guerra entre a China e os Estados Unidos.
O presidente da RPC, Xi Jinping, reiterou em 2019 a posição de Pequim: que Taiwan seja incorporado ao continente por meio da fórmula “um país, dois sistemas”, já usada para Hong Kong. Essa proposta é rejeitada pela população taiwanesa e também pelos dois principais partidos políticos, que apontam para a recente repressão chinesa em Hong Kong.
Já o presidente dos EUA, Joe Biden, declarou em outubro de 2021 que os EUA iriam defender Taiwan em caso de ataque da China.
Especialistas disseram que a invasão da Ucrânia pela Rússia pode estimular Pequim a tomar uma atitude semelhante em relação a Taiwan.
O especialista Alexandre Coelho, pesquisador da Observa China e secretário do Comitê de Pesquisas em Ásia e Pacífico da International Political Science Association, avalia que as recentes visitas de representantes dos EUA a Taiwan e de representantes de Taiwan aos EUA acirraram demasiadamente as tensões. “A guerra parece que vai ficando mais perto”, afirma.
Ele ressalta que uma eventual derrota do partido Kuomintang nas eleições de Taiwan em 2024 poderia elevar a tensão a um novo patamar. “Pode ser uma boa desculpa para Xi tentar ‘reunificar’ Taiwan à força”, observou.
Apesar dos temores de uma escalada militar entre os dois lados, o povo taiwanês não parece muito preocupado com a situação. O especialista em relações China-Taiwan Wen-Ti Sung, da Universidade Nacional da Austrália, diz que o povo taiwanês já está acostumado a provocações militares chinesas.
“Eles têm vivido na presença quase constante de pressão militar e diplomática chinesa por mais de um quarto de século, desde que Taiwan realizou sua primeira eleição presidencial direta, em 1996”, afirma.
O que é o Consenso de 1992?
Em 1992 ocorreu uma rodada de negociações em Hong Kong entre representantes do PCC e do KTM. Os dois lados concordaram que só existe uma China, ainda que discordem sobre o que isso significa. Foi só a partir de 2000 que esse acerto passou a ser chamado de Consenso de 1992.
Esse consenso nunca foi formulado oficialmente por representantes dos dois governos, muito menos ratificado, assim não existe uma formulação oficial. Entende-se que ambos os lados reconhecem a existência de apenas uma China, mas têm diferentes interpretações de como seria essa única China.
Para o Partido Comunista Chinês, o princípio “Uma só China” tem uma mensagem e objetivo claros: Taiwan deve ser reintegrado ao continente sob a liderança de Pequim. Para o KTM, o princípio significa “Uma China, diferentes interpretações”, e a República da China (Taiwan) é a única China.
O partido governista em Taiwan, o DPP, da presidente Tsai Ing-wen, não é um entusiasta do Consenso, que nunca endossou. “Em 1992, ambos os lados chegaram a alguns pontos em comum”, afirmou a presidente em seu discurso de posse, em 2016. “Eu respeito esse fato histórico.” Ela disse estar disposta a manter a paz e a estabilidade, mas sem desconsiderar a democracia e a vontade popular dos taiwaneses.
Fonte: DW.