Desde o início do mês, a relação entre os Estados Unidos e a Turquia, oficialmente aliados em questões de defesa, tem dados sinais de instabilidade e desgaste.
Uma jogada brusca do presidente americano, Donald Trump, retirou tropas americanas do norte da Síria, presença que até então blindava em alguma medida o avanço da Turquia sobre as forças curdas da região.
Mas Ancara não apenas avançou contra os curdos como sua ofensiva colocou sob fogo militares dos EUA que ainda não haviam sido evacuados da área. Conforme confirmado pelo Pentágono, um disparo da artilharia turca caiu a apenas cem metros de onde estavam os americanos.
Washington respondeu às investidas militares turcas com sanções econômicas ao país comandado pelo presidente Recep Tayyip Erdogan.
Por outro lado, no terreno em que se baseia o relacionamento entre Washington e Ancara há, literalmente, elementos sensíveis e que podem conter maiores hostilidades.
Primeiro, a Turquia tem uma localização geográfica estratégica que faz do país a ponte entre a Europa, o Oriente Médio e a Ásia Central, e abriga ainda o segundo maior exército da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Como se isso não bastasse, a Turquia abriga meia centena de bombas nucleares dos EUA que estão armazenadas na base aérea de Incirlik, localizada a pouco mais de 100 quilômetros da fronteira com a Síria.
Após a ofensiva ordenada por Erdogan, o governo Trump começou a estudar planos para retirar as armas que, segundo uma importante americana citada pelo jornal “The New York Times”, se tornaram uma espécie de refém de Erdogan.
Nesta quinta-feira, diretamente de Ancara, o vice-presidente americano, Mike Pence, anunciou que os EUA e a Turquia concordaram com um cessar-fogo de cinco dias na ofensiva turca na Síria. Isso deve aliviar as tensões na região.
Mas como essas bombas atômicas chegaram à Turquia?
Herança da Guerra Fria
Como parte dos acordos firmados com a então União Soviética para resolver a chamada Crise dos Mísseis de 1962, Moscou comprometeu-se a retirar seus mísseis nucleares de Cuba, enquanto Washington removeria seus mísseis da Turquia.
“Os Estados Unidos retiraram os mísseis, mas sempre mantiveram as bombas nucleares armazenadas na Turquia para serem (eventualmente) usadas por eles e por alguns aliados da Otan”, diz Jeffrey Lewis, professor de controle de armas do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais (Califórnia, EUA).
Segundo Lewis, existem outros países que estão na mesma situação, como Alemanha, Itália, Bélgica e Holanda.
Os artefatos nucleares americanos na Turquia são cinquenta bombas táticas B61, capazes de transportar cargas nucleares calculadas entre 300 toneladas e 170 quilotons (equivalente a aproximadamente 11 vezes a capacidade destrutiva da bomba de Hiroshima).
Atualmente, essas bombas só podem ser usadas pelas forças americanas, já que, por cerca de duas décadas, Ancara deixou de ter aviões e pilotos certificados para lançá-las.
No entanto, em um contexto de tensões crescentes com a Turquia, quais riscos os EUA podem enfrentar mantendo essas bombas em Incirlik? E o que poderia acontecer em uma tentativa de retirada?
Um símbolo e uma ameaça
Segundo um alto funcionário americano ouvido pelo “New York Times”, a situação dessas bombas envolve um dilema: retirá-las de Incirlik marcaria o fim da aliança entre os Estados Unidos e a Turquia; mas mantê-las ali estaria perpetuando uma vulnerabilidade nuclear que deveria ter sido resolvida anos atrás.
Não é a primeira vez que essa discussão é levantada, embora provavelmente o senso de urgência de agora seja uma novidade.
Desde o fim da Guerra Fria, o destino de bombas nucleares americanas espalhadas por países aliados está em discussão na Otan, mas, aparentemente, vários Estados membros — incluindo a Turquia — se opuseram à sua retirada por serem consideradas um símbolo de compromisso dos EUA com o apoio à defesa dos outros membros.
Alguns analistas também apontaram o perigo de sua retirada servir de desculpa para a Turquia tentar desenvolver suas próprias armas nucleares, uma ideia recentemente sugerida por Erdogan durante um comício de seu partido, em que disse ser “inaceitável” que seu país não tenha seu próprio arsenal atômico.
Especialistas como Ankit Panda, pesquisador da Federação de Cientistas Americanos (FAS), acreditam que não faz sentido politicamente manter essas armas na Turquia.
“Essa aliança disfuncional não pode e não será salva pela presença de bombas americanas em solo turco”, escreveu Panda em um texto na revista americana The New Republic.
“Essas bombas certamente podem ser removidas e a Turquia pode continuar sendo a ovelha negra intolerável da Otan.”
E é justamente o papel da Turquia dentro da aliança que está no centro do debate.
“O governo turco mudou. O presidente Erdogan se tornou um ditador em termos funcionais e sua política externa é muito mais pró-Rússia. Ele deixou de ser um aliado rumo a uma posição mais neutra ou mesmo contrária a muitos dos interesses da segurança dos EUA “, diz Lewis.
A aproximação de Ancara e Moscou é evidente em alguns fatos concretos, como na decisão de Erdogan de comprar o sistema de mísseis russo S-400, o que levou Washington a excluir a Turquia do programa de fabricação e compra dos novos caças F-35.
“Se a Turquia se candidatasse a se tornar membro da OTAN agora, ela nem chegaria à porta”, escreveu Max Boot, analista do Conselho Americano de Relações Exteriores (CFR).
O especialista explica que hoje a organização exige candidatos com sistemas democráticos estáveis, compromisso com o Estado de direito e os direitos humanos, uma economia de mercado e a busca por soluções para disputas étnicas ou territoriais por meios pacíficos.
“A Turquia tem uma economia de mercado, mas não atende a nenhum dos outros critérios”, aponta.
Bombas seguras?
Também não é a primeira vez que os Estados Unidos se preocupam com a situação de suas bombas atômicas na Turquia.
Em 2016, durante uma tentativa de golpe de Estado contra Erdogan, a base de Incirlik foi usada por alguns dos participantes da conspiração, incluindo um general que pediu a proteção dos militares americanos, o que foi negado.
Depois, forças leais ao governo cortaram o fornecimento de energia da base e fizeram uma operação para deter os rebeldes que se abrigaram ali.
Este episódio explica em parte o distanciamento entre Ancara e Washington, uma vez que foram expressas suspeitas do governo Erdogan sobre o possível apoio dos EUA ao levante.
Questiona-se também a posição da Casa Branca em não autorizar a extradição de Fetullah Gülen, o clérigo islâmico considerado pelo governo turco como o responsável pela revolta.
De qualquer forma, existe um conjunto de medidas de segurança que dificultam o acesso às bombas americanas.
Jeffrey Lewis explica que essas armas estão em um cofre dentro de um prédio vigiado por forças americanas — e em torno do qual existe um perímetro de isolamento.
Além disso, as próprias bombas possuem dispositivos de segurança e requerem um código de acesso para usá-las.
“Todas essas medidas são feitas para protegê-las de um grupo terrorista ou de um militar desonesto. Mas as armas não estarão seguras se, por exemplo, o governo turco decidir se apropriar delas”, diz o especialista.
Lewis é a favor da retirada das bombas de Incirlik.
“A Turquia não pode fazer muito para evitar. Supondo que eles não sejam notificados antecipadamente sobre a transferência, existem aviões americanos que entram e saem dessa base o tempo todo, então você só precisa enviar o avião, carregá-lo e voar de volta “, diz.
O especialista acrescenta que os Estados Unidos já haviam feito uma operação semelhante em 2001 na Grécia, quando foi avaliado que a situação de segurança havia se deteriorado.
Outros especialistas, como Vipin Narang, especialista em tecnologia nuclear do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), alerta que retirar as bombas envolve alguns riscos.
“Tirá-las nessas circunstâncias pode ser incrivelmente arriscado, pois envolveria tirar 50 armas nucleares dos cofres, movê-las dentro do espaço aéreo turco e depois retirá-las deste espaço aéreo”, disse Narang ao jornal britânico The Guardian.
“Elas podem estar vulneráveis a acidentes ou ataques”, alertou.
Fonte: BBC.