O britânico Peter Frankopan se tornou uma figura popular dentro de uma onda de historiadores – como o israelense Yuval Noah Harari – que se debruçam sobre uma visão mais ampla da trajetória da humanidade para explicar o caminho que nos trouxe até as atuais circunstâncias.
O historiador é autor dos best-sellers O Coração do Mundo: Uma nova história universal a partir da Rota da Seda – o encontro do Oriente com o Ocidente (editora Crítica) e sua sequência The New Silk Roads: The New Asia and the Remaking of the World Order (em tradução livre, As Novas Rotas da Seda: A Nova Ásia e o Rearranjo da Ordem Mundial, ainda sem edição brasileira).
São livros que não apenas criticam uma visão excessivamente centrada no Ocidente como protagonista da História como defendem que o eixo das grandes decisões mundiais está se deslocando para o Oriente.
O início de 2022, com a Guerra da Ucrânia e o anúncio de uma “parceria sem limites” entre o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente chinês, Xi Jinping, está em consonância com a análise de Frankopan, que vem ganhando destaque desde meados da década passada.
O historiador (cuja família é de origem croata) se define como “particularmente interessado nas trocas e conexões entre regiões e povos”. Ele conversou com a BBC News Brasil por telefone direto de Oxford, onde é professor de História Global e diretor do Centro para Pesquisa Bizantina.
BBC News Brasil – O senhor já vinha defendendo que o eixo de decisões com impacto global não passa mais apenas pelo Ocidente e que falta atenção sobre o processo de mudança que está em curso. Como os eventos deste início de 2022, que dizem respeito à relação entre Ocidente e Oriente, se incorporam à sua análise?
Peter Frankopan – O problema é que nós reagimos apenas a eventos dramáticos. Nós reagimos agora, por causa da guerra na Ucrânia, a uma aliança entre Pequim e Moscou. Mas há muitas coisas que estão acontecendo, e nós não estamos prestando atenção. O preço do petróleo foi para as alturas, e países como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos serão beneficiários dessa situação. Esses movimentos são muito profundos.
Quando eu digo que o eixo do mundo está se movendo para a Ásia, isso não é necessariamente algo bom. Como historiador, como cientista, eu tento olhar para fatos. O que escrevi em The New Silk Roads é que as decisões tomadas em Moscou, Pequim, Teerã, Nova Déli e Islamabad [Paquistão] já são mais importantes do que decisões tomadas em Lisboa, Madri, Roma ou Paris. Nos últimos 300 ou 400 anos, foram os europeus que causaram problemas pelo mundo todo, e foi a ascensão europeia que desafiou a ordem de então.
Essa relação Xi-Putin tem uma importância por questões pessoais. Eles têm idades próximas, têm um histórico familiar parecido, uma trajetória pessoal com semelhanças, então, obviamente Xi e Putin têm uma proximidade. Mas a parte mais importante dessa relação é que ambos veem o Ocidente de duas maneiras: ou em declínio ou como uma ameaça. Essa percepção global é muito importante, para entender a mentalidade dos dois e também suas ações de governo e estratégias.
BBC News Brasil – Quais cenários o senhor imagina para os próximos anos a partir dos efeitos da guerra na Ucrânia?
Frankopan – É sempre difícil fazer previsões, porque são muitos fatores envolvidos e ainda é cedo. Há discussões em meios militares e de Defesa sobre o possível uso de armas nucleares de baixo alcance nesse conflito. Se algo assim acontece, tudo fica imprevisível. Acho que a maneira mais útil de olhar para o que está acontecendo é a do mundo dos negócios: qual é o melhor e qual é o pior cenário?
Por exemplo, essa invasão russa vai fazer a vida ficar mais difícil para milhões de pessoas no Brasil. O custo para comprar comida, fertilizantes, para exportar, o preço da energia, tudo isso vai subir de forma dramática. Apesar de pensarmos que tudo isso está acontecendo em um canto distante do mundo, as repercussões em outros lugares são uma parte importante.
O Brasil é hoje um dos países no mundo, como os Estados Unidos e o Reino Unido, em que todos estão extremamente divididos. Há uma divisão muito forte e inflamada sobre [o presidente Jair] Bolsonaro. Como historiador, eu diria que, quando há divisão no país, existe perigo real. As próximas eleições no Brasil serão afetadas por questões que envolvem energia, comida, custo de vida, e isso será explorado.
Nós vivemos em uma era em que Putin está disposto a sacrificar vidas por ganhos políticos. E isso é muito perigoso. Acho que os piores cenários são muito, muito ruins. 45% da população ucraniana deixou o país, acho que o futuro a longo prazo é muito sombrio. O futuro a longo prazo para a Rússia é terrível. As empresas que estão deixando a Rússia talvez nunca voltem. Talvez esse seja um momento em que uma nova Cortina de Ferro seja erguida, pelo menos sobre a Rússia.
E há nações que nós não estamos olhando, mas onde o envolvimento da Rússia já é muito grande. Cazaquistão, outros países da Ásia Central, a Geórgia, a Armênia, o Azerbaijão são lugares onde a Rússia é muito, muito ativa. A gente precisa pensar com cuidado o que isso significa e como viver em um mundo em que não há apenas um, mas duas ameaças reais. Há muita preocupação sobre a ascensão chinesa.
São muitas questões e poucas respostas. Nós estamos com muitos problemas, mas não sabemos lidar com eles. Temos consciência de que isso é uma questão, mas não temos uma estratégia ou sabemos como responder. Em parte porque não há um plano próprio.
BBC News Brasil – Muitos analistas apontam que uma atitude expansionista da aliança militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) contribuiu para deflagrar o atual conflito. Concorda com essa avaliação?
Frankopan – Acho que as pessoas não sabem do que estão falando. A Otan não expande. Os países pedem para aderir, fazem uma escolha. A razão para isso é porque sabiam que um dia haveria ataques como esse de agora à Ucrânia.
Você poderia fazer a pergunta de uma maneira diferente: deveriam os Estados Unidos e Otan ter recusado a entrada e deixar esses países serem sacrificados? Nós já vimos muitas vezes antes o que acontece agora com a Ucrânia. Esses países atuam por conta própria, ninguém está forçando nada. Eles querem proteção e solidariedade de qualquer ataque em potencial e tomaram essa decisão por uma boa razão. A Ucrânia está mostrando o porquê disso.
BBC News Brasil – O senhor acha que a ascensão não apenas de potências, mas também de países menores governados por autocracias, como é o caso na Ásia Central, pode representar uma ameaça ainda maior à democracia global?
Frankopan – Eu não acho, eu sei que será assim. Por duas razões. A primeira é que está claro que as liberdades estão sendo severamente restringidas nos países que você mencionou: liberdade de imprensa, liberdade até de pesquisar na internet. Está claro para mim que mais e mais países estão se tornando menos democráticos. A estrada rumo ao totalitarismo e a Estados totalitários está crescendo, não está diminuindo. Mas não é só isso.
Em países no Ocidente, incluindo o Brasil, pesquisas mostram que, entre pessoas abaixo dos 35 anos, muitas delas não acreditam que a democracia está trazendo bons resultados. Eles não veem a importância da política. E também poucos jovens votam. Há uma enorme desconfiança sobre políticos, e não há engajamento na defesa da democracia. A democracia está sendo pressionada por outros sistemas que estão tomando caminhos diferentes, e também está sendo pressionada dentro do próprio sistema democrático. Isso deve ser realmente um ponto de preocupação para nós.
Pode ser que isso mude. Pode ser que líderes políticos com mais perspicácia aprendam a lidar com isso, como em um relacionamento ou casamento. Algo como dizer “Eu sei como você se sente, vamos trabalhar juntos nisso”. Talvez seja só uma fase, mas temos um grande desafio no momento.
BBC News Brasil – Alguns analistas reavivaram, dentro desse contexto de caminhos diferentes para formas de governar, uma ideia de “choque de civilizações” como defendia o historiador Samuel P. Huntington. Há validade nessas análises?
Frankopan – Huntington é extremamente influente nos Estados Unidos, e a visão dele também reflete a ideia de um mundo bipolar que muitos americanos seguem: América contra a China, agora América contra Rússia. Acho que há muito mais fatores e complicações do que sugere esse tipo de visão em que tudo se define e se resolve. Minha visão é que a espécie humana, em sua grande maioria, é composta por boas pessoas, que toleram visões diferentes, opiniões diferentes, times de futebol e comida diferentes e também religiões. Nós conseguimos levar bem essas diferenças. O problema é que a exploração dessa bondade pode também criar obscuridade e nos leva a acreditar que podemos ser conduzidos por pessoas ou grupos que prometem melhores resultados do que temos hoje. Isso tem a ver com a honestidade dos políticos e com fatores econômicos.
A maior ameaça para a estabilidade política é a contração econômica. Estou preocupado com a Rússia, mas também com a China. Foi anunciada recentemente a menor projeção de crescimento para o PIB [Produto Interno Bruto] chinês em 30 anos. Isso significa que todos na China estão sendo avisados que seus filhos talvez sejam menos ricos do que se esperava para o futuro.
No Ocidente, com os problemas de macroeconomia que mencionei – preço da energia, da comida, inflação, enfim, custos em geral -, chega um momento muito perigoso porque todos teremos que perceber que nós seremos mais pobres e não mais ricos do que três anos atrás. E nós não temos escolha. Vamos fazer o melhor que a gente pode.
Talvez precisemos ser mais agradecidos do que na época em que vivíamos em grande prosperidade, talvez sermos mais cuidadosos sobre arrumar brigas com os outros e tentar entender melhor o mundo. A outra opção é colocar a culpa em alguém e começar guerras. E isso tem sido uma grande parte da história europeia nos últimos 400 ou 500 anos. A luta constante como meio para justificar os problemas.
Parece que estamos em um filme em que eu não acredito no que está em frente aos meus olhos. Parece um daqueles filmes em que você sabe no meio que o final não vai ser feliz. Pessoalmente, sempre quero um filme em que todos acabem sorrindo e felizes juntos. Mas a história, na maioria das vezes, não acaba assim.
BBC News Brasil – O senhor vem defendendo que se olhe mais detidamente para lugares como a Ásia Central, que tem vivido uma época de maior desenvolvimento econômico. Uma série de TV bastante popular e premiada, Succession, curiosamente fez uma menção a isso quando um personagem, um investidor do Azerbaijão, chama a atenção de um dos protagonistas, americano, e diz “Coisas estão acontecendo em Baku [a capital azeri]”. As pessoas estão olhando mais para essa região do mundo?
Frankopan – Não [risos]. Com exceção de Jesse Armstrong, o criador de Succession, que é uma pessoa inteligente, eu não acho que estejam prestando atenção. Putin e a Rússia invadiram a Ucrânia em 2014, e quatro anos depois houve uma Copa do Mundo lá e ninguém mais falava de Crimeia nem nada.
Nada disso é novo. A Rússia invadiu a Geórgia em 2008, é muito ativa no Cáucaso no Oriente Médio, na África. As pessoas só estão prestando atenção agora porque a Rússia está indo um pouco mais longe do que costumava. Mas é a mesma coisa, os mesmos princípios. É como um dia em que você acorda e percebe que havia entendido tudo errado. Acho que ninguém está fazendo essa pergunta.
Fonte: BBC.