Em entrevista ao podcast Mundioka, especialistas afirmam que a OTAN concluiu seu projeto de expansão para as fronteiras russas e acirramento entre as partes coloca no horizonte um confronto direto com a Rússia, com proporções globais e participação da China ao lado de Moscou.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) completa 75 anos nesta quinta-feira (4). Fundada em 4 de abril de 1949, no contexto da Guerra Fria entre EUA e União Soviética (URSS), ela tinha como objetivo formar uma aliança militar entre países do eixo ocidental contra países do eixo soviético.
Para se proteger da expansão belicista da OTAN, em 1955, países alinhados à URSS formaram o Pacto de Varsóvia, que foi dissolvido em 1991, com o fim da URSS, ao mesmo tempo que foi firmado um acordo que previa que a OTAN não expandiria para os limites da zona de influência da antiga URSS, compromisso que foi sistematicamente desrespeitado nos anos seguintes.
Com atuais 32 membros, a aliança continua se expandindo, causando instabilidade no contexto de segurança nacional em diversas regiões, inclusive com invasões, como aconteceu na antiga Iugoslávia.
Em coletiva a repórteres nesta quinta-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou que as relações entre Rússia e OTAN estão, agora, em confronto direto por conta da expansão da aliança em direção às fronteiras com a Rússia.
“Na verdade, essas relações caíram agora para o nível de confronto direto. Países da OTAN, a aliança em si, já não é algo que está em constante crescimento, mas já está envolvida no conflito em torno da Ucrânia. A OTAN continua o seu movimento em direção às nossas fronteiras, expandindo sua infraestrutura militar em direção às nossas fronteiras”, disse Peskov a repórteres.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam qual o propósito da existência da OTAN, quais nações são consideradas inimigas pela aliança e se há algum tratado de segurança coletiva que possa ser usado como contrapeso à organização.
Por que a OTAN foi criada?
Ricardo Cabral, professor e doutor em geopolítica, explica que a ascensão de repúblicas populares soviéticas no Leste Europeu após a Segunda Guerra Mundial foi considerada uma ameaça por Washington, que passou a incentivar “uma paranoia sobre a expansão soviética”.
“E, nesse contexto, você sai com a Doutrina Truman. A Doutrina Truman tem o objetivo de reestruturar toda a estrutura de poder norte-americana. Aí vai vir o National Security Act, que é de 1947, que cria a CIA, cria o Pentágono, começa a transformar a estrutura governamental norte-americana para uma outra guerra que eles estão prevendo que será com a União Soviética.”
Ele acrescenta que a paranoia se alastrou para o continente sul-americano, visto por Washington como um “quintal”.
“Em 1947, primeiro eles organizam um quintal, vamos colocar assim, que é aqui, as Américas, com o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, o TIAR, Tratado do Rio de Janeiro, que coloca todo mundo sob o guarda-chuva nuclear norte-americano e, mais do que isso, subordina estratégica e militarmente toda a América do Sul aos desígnios norte-americanos.”
De acordo com o especialista, o próximo alvo foi a Europa, com o lançamento do Plano Marshall em 1948, que tinha como pretexto fomentar a reconstrução da Europa pós-guerra, mas cujo objetivo estratégico era subjugar os países do continente “aos desígnios dos norte-americanos”.
Nesse contexto, o governo americano começa a difundir na Europa um discurso de que o continente está em perigo e que a URSS está avançando, retórica que foi absorvida pelas lideranças europeias, culminando em uma reunião entre lideranças políticas europeias e americanas em Bruxelas que dá origem à OTAN.
“A partir dali você já tem claramente o contexto da Guerra Fria do jeito que nós a conhecemos. Você vê que a resposta do lado oriental da União Soviética só se dará em 1955, com o Pacto de Varsóvia, que vai ser dissolvido em 1991 com a dissolução também da União Soviética, mas durante esse tempo, de 1949 a 1991, nós tivemos ali, quase em vários momentos, o perigo da eclosão de uma guerra nuclear.”
Cabral destaca que, após o fim da URSS, os Estados Unidos passaram a mirar o desmembramento da Rússia, o que ele classifica como “o último obstáculo para a supremacia norte-americana”. Ele afirma que a ideia era dominar o que especialistas em geopolítica chamam de “Heartland”: a extensa massa territorial representada geograficamente pela Rússia, extremamente rica, populosa e cheia de recursos naturais e humanos.
Foi nesse contexto que o presidente russo, Vladimir Putin, ascendeu ao poder, em 1999, quando foi eleito para o seu primeiro mandato presidencial, com o objetivo de “organizar a casa”.
“Depois de organizar a casa, ele [Putin] começa o caminho que levou até hoje, na minha humilde opinião, a Rússia a um protagonismo maior do que as suas capacidades econômicas. […]. Hoje, sem dúvida nenhuma, a Rússia retomou a posição de grande potência.”
O especialista afirma que a OTAN continuou com o processo de expansão e passou a ser instrumentalizada, principalmente durante a gestão de Barack Obama na presidência dos EUA, tendo como objetivo conter a Rússia e também a China, que Cabral aponta ter ultrapassado as capacidades militares dos EUA. Para isso, a gestão Obama lançou o chamado Comando do Pacífico dos EUA, que é a sétima esquadra.
“A Organização do Tratado do Atlântico Norte agora está fazendo gestões para incluir Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul, não sei como é que vai ser isso, como é que eles vão arrumar, se vai ter outro nome, qual a configuração que vai ter, mas nesse momento tem isso.”
A OTAN como elemento disseminador de conflitos
Vinicius Modolo Teixeira, professor de geopolítica da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e coordenador do Laboratório de Desenvolvimento Territorial e Geopolítica (DTG-LAB), compartilha da opinião de que a OTAN deveria ter sido extinta após o fim da Guerra Fria, e aponta que “é justamente a continuidade da OTAN que caracteriza os novos conflitos, as novas tensões” atualmente em curso no mundo. Com isso, ele considera que a organização é mais protagonista de discussões e desgastes entre países do que uma mantenedora da paz.
“Para dentro do seu escopo, dos seus países que são aliados, ela certamente auxilia, facilita na manutenção da paz. Mas para fora dele, para as fronteiras da OTAN, ela acaba se tornando um agente provocador. E isso acaba tendo, então, uma condição de atrito principalmente com a Rússia e países no entorno.”
Teixeira afirma que a perspectiva de um confronto entre Rússia e OTAN é vista como uma possibilidade nos próximos anos, diante do acirramento de tensão entre os lados. Ele acrescenta ainda que o recente comunicado da China, afirmando que se colocaria ao lado de Moscou em um conflito entre a Rússia e a OTAN serviu como “um bom recado para mostrar como o mundo está separado, está em blocos diferentes”.
“Mas é também uma declaração que faz pressão para que a OTAN não entre efetivamente dentro da guerra [ucraniana] com soldados, com mais armamento, que já é uma provocação para os russos de maneira tendenciosa de fazer a guerra pender para o lado ucraniano. Então a China, ao tentar balancear essa possibilidade, ela se posiciona de maneira declarada e ativa no conflito”, afirma o especialista.
Teixeira acrescenta que um conflito entre OTAN e Rússia, com envolvimento da China, é o cenário de Terceira Guerra Mundial.
“Isso escalaria, desde as armas táticas até o uso de armas estratégicas. Seria um cenário bastante perigoso. Então a OTAN, ao entrar em um conflito com a Rússia, ela tem que entender que a China também teria ali as suas costas quentes, entraria em um conflito em toda a parte do mundo. E é lógico que esse cenário é o cenário de Terceira Guerra Mundial.”
Existe algum tratado atual que serve de contrapeso à OTAN?
Questionado se há, na atualidade, algum tratado militar equivalente à OTAN, que possa servir de contrapeso à aliança, Teixeira cita a Organização para Cooperação de Xangai, também conhecida como Pacto de Xangai, que foi criada no mundo pós-Guerra Fria, inclui a Rússia e a China e é por vezes classificada como uma aliança anti-OTAN.
“Outro tratado que é importante, que é um tratado de contenção da OTAN, é o tratado da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, que é a OTSC. A Rússia cria, dentro dos seus ex-países da União Soviética, esse tratado firmado com Belarus, Cazaquistão e outras ex-repúblicas soviéticas para impedir que a OTAN avançasse sobre eles também.”
O especialista acrescenta ainda que considera que o ciclo de expansão da OTAN fechou após a adesão de Finlândia e Suécia, uma vez que a aliança chegou próximo à fronteira da Rússia.
“Agora, com a chegada de Finlândia e Suécia [à OTAN], você tem praticamente um encerramento ali, um fechamento das fronteiras. Os dois lados estão realmente em oposição, agora com fronteiras coladas. A chegada da Finlândia acaba colocando ali mais de 1.300 km de fronteira conjunta. Então, você tem um cenário que, para a Finlândia, do meu ponto de vista, é muito mais arriscado agora ser parte da OTAN do que anteriormente ela estando neutra. Não havia uma ameaça clara definida [antes]. Agora, sendo parte da OTAN, logicamente, ela se torna um alvo preferencial no cenário de conflito.”