Especialista explica a tragédia humanitária e conta por que o atual cenário no país não recebe a devida atenção política e midiática.
Desde a eclosão do conflito armado, em abril, protagonizado pelo exército liderado pelo general Fattah al-Burhan e as Forças de Apoio Rápido (FAR), sob o comando do general Mohamed Hamdan Dagalo, o Sudão vive a maior crise de deslocamento interno do mundo, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM).
O conflito também causou, até o momento, pelo menos 9 mil mortes. Em comunicado conjunto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) informaram que “700 mil crianças sofrem de desnutrição aguda grave e 100 mil crianças precisam de tratamento para salvar suas vidas”. Além disso, a OMS projeta que, até o fim de 2023, ao menos 10 mil crianças com menos de cinco anos irão morrer de fome no país.
Para explicar a negligência da cobertura midiática ocidental à tragédia humanitária no Sudão, Marta Regina Fernández y García Moreno, professora e diretora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), destaca, a princípio, dois pontos: uma espécie de mediação do valor da vida, ou seja, quais vidas importam e merecem ganhar visibilidade, o que tem ligação direta com o outro fator, onde os conflitos estão localizados e quem são as pessoas envolvidas ali.
“Estamos falando de um conflito no Sudão, no continente africano. As pessoas ali fundamentalmente professam a fé islâmica, a gente tem ali uma população negra. Então, de alguma forma, essa resposta insuficiente e o fato de a mídia justamente estar focalizando outras partes do mundo não podem ser entendidos sem levar em consideração esses dois fatores”, pontua a especialista em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil.
Em outras palavras, García Moreno considera “o racismo e o colonialismo” inerentes à “distribuição desigual do valor das vidas”. Para a professora, esses dois elos ainda estruturam a política global. “Esses conflitos ainda continuam, em grande medida, invisibilizados e imobilizando recursos ou respostas da comunidade internacional, que são bastante insuficientes.”
A professora vê o cenário mundial, em relação aos conflitos, como um “jogo de luzes e sombra”. “Estávamos lá com todas as luzes iluminando o conflito da Ucrânia, e agora, recentemente, com o conflito no Oriente Médio. Como sabemos, esses conflitos africanos, como Mali, Burkina Faso e Níger, quanto a esse conflito que está ocorrendo no Sudão, podem ser em grande medida invisibilizados“, explica.
Ela afirma que a comunidade internacional sempre traz à tona, sobretudo em países “às sombras”, questões relacionadas às dificuldades de acesso dos trabalhadores humanitários, barreiras burocráticas e dificuldades de entrega de comida. Embora sejam fatores relevantes, García Moreno considera que “a grande explicação para que a comida não chegue ali” é uma “falta de vontade política”.
Ideia de conflitos endógenos pode contribuir para desmobilizar ações
O terceiro fator, mas não menos importante, apontado por García Moreno é a ideia de que os conflitos que acontecem no continente africano são “endógenos, pré-coloniais”, habituados a uma noção de que não vão acabar nunca. “Quando você fala isso, obviamente retira a cumplicidade, a responsabilidade, o colonialismo, pelos conflitos que vêm assolando o continente africano.”
Essa interpretação, conforme afirma a professora, contribui para o apagamento do mote político da situação, direcionando o olhar dos acontecimentos para um ângulo caritativo.
“Sempre notamos um olhar ocidental sobre a África, que é um olhar caritativo, esse olhar da pena do Ocidente como a fonte da salvação. Víamos isso muito, por exemplo, na grande fome que ocorreu na Etiópia na década de 1980, em que tivemos uma série de festivais de música no Ocidente que buscaram justamente, por meio de uma mobilização, angariar recursos para a fome na Etiópia.”
Poder, ouro, petróleo: como entender o atual conflito no Sudão?
Embora rivais no atual conflito que gera diversos prejuízos humanitários ao Sudão, os generais que protagonizam o embate já estiveram do mesmo lado em 2019, quando o então presidente Omar al-Bashir, no poder havia 30 anos, foi destituído e detido pelas Forças Armadas do país.
Apesar do governo de transição, as forças truculentas que estavam a serviço de al-Bashir foram mantidas e, consequentemente, “todos os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra, os genocídios”, lembra García Moreno.
O Sudão, desde 2011, foi dividido entre a a República do Sudão e o Sudão do Sul. Para a professora, a fragmentação é um ponto importante para entender o atual conflito interno. “Desde a independência do Sudão do Império Britânico em 1956, a principal fonte de financiamento do país passou a ser o petróleo. Quando você tem essa divisão, o que acontece é justamente que três quartos das reservas de petróleo passam a estar localizadas no Sudão do Sul, então automaticamente o Sudão se vê numa situação econômica complicada.”
Em 2012, no Norte do Sudão, minas de ouro foram encontradas, o que encampou novas nuances para o conflito. “A busca por esse recurso natural em substituição ao petróleo vem sendo fundamental, muitos têm chamado de ‘a maldição do ouro’. Hoje, o Sudão possui uma das maiores reservas de ouro da África, e o que acontece é que um dos grupos, controlado pelos paramilitares, vêm tendo acesso e controle da maior parte desse ouro”, explica.
A professora destaca ainda que não é possível entender o conflito somente a partir das disputas internas recentes, sendo necessário compreender a questão colonial. Segundo ela, as elites colonizadoras se sustentavam da expropriação dos recursos naturais das colônias, o que, de certa forma, passou a orientar a economia dos então países independentes a esses recursos. “Quando houve a divisão, o norte se viu privado desse recurso e passou a apostar no ouro, e, nesse sentido, o ouro se tornou um recurso estratégico vital.”
‘Populações vulnerabilizadas sofrem as consequências da guerra’
García Moreno ressalta que são as populações vulnerabilizadas quem sofrem com os efeitos do embate, enquanto outra parcela lucra com o conflito. “São as populações mais vulnerabilizadas que hoje sofrem com a escassez de combustível, com a dificuldade de se alimentar, [com] falta de comida, […] de água potável, […] de energia elétrica, de serviços de saúde. […] Além da fome, você tem uma série de outras emergências que, combinadas, agravam ainda mais o quadro.”
Sérgio Cabral, médico pediatra e humanitário, que já trabalhou no Sudão, contou ao Mundioka que a situação atual da equipe humanitária que está no Sudão é de muita dificuldade. “Com os conflitos lá, há muita dificuldade para chegar remédio, chegar material, e, quando chega, o consumo é imediato, por conta da quantidade de pessoas doentes e feridas”.
Na percepção do médico — que já trabalhou no país africano quatro vezes, nem sempre em contextos de conflitos armados —, o Sudão tinha regiões prósperas e seguras, como a capital Cartum. Porém, com o atual conflito pelo poder, “a violência está muito grande, generalizada”, resume.
Diante dessa conjuntura, Cabral lista que as principais dificuldades encaradas pelos médicos são a burocracia, a dificuldade de locomoção e a falta de infraestrutura para o nobre trabalho de salvar vidas. Há “a burocracia de entrada de material, de remédios no país. Você tem que levar pacientes, chegar até hospitais e, para isso, tem que atravessar ruas, cidades, com risco de bombardeios, ataques, assaltos. Outro exemplo são os bombardeios em hospitais. Vários hospitais foram destruídos com a guerra. Então você não tem um hospital construído e, às vezes, tem que colocar tendas”, elenca.
Além do comprometimento da produção de alimento em meio ao conflito, o que consequentemente leva à fome, o médico enumera outros problemas: a complicação de doenças — sendo o sarampo uma delas —, o aumento de crimes sexuais e a impossibilidade de as crianças irem à escola.
Frente a tal cenário, Cabral conta que os profissionais trabalham com muita frustração. “As pessoas falam que é muito bonito, que o trabalho é uma aventura. Não tem nada de aventura. Não é um filme. É um trabalho profissional, médico, muito profissional, igual em qualquer lugar. No entanto, em condições precárias, onde muitas vezes a gente tem insumos para algumas coisas e não tem para outras. […] é muito frustrante você olhar e falar: ‘Poxa, se eu tivesse tal remédio ou tal situação, eu salvaria mais vidas.’ Mas a gente está cheio de limites.”
De acordo com o médico, “o dinheiro que o Unicef tem para ajudar o Sudão não chega a um quarto do necessário”.
“Estamos vendo dinheiro sendo jogado nas guerras, milhões e bilhões de dólares jogados em guerra, e o Unicef, essa organização tão importante para cuidar da criança, não conseguiu arrecadar um quarto do necessário para salvar vidas de crianças no Sudão”, lamenta o profissional.