Dezenas de prefeituras francesas desafiaram nesta segunda-feira (22) uma orientação do governo e hastearam a bandeira palestina em apoio ao reconhecimento oficial do Estado palestino pela França. O gesto, simbólico politicamente, expõe divisões internas em meio à promessa presidencial de formalizar o reconhecimento na ONU, reacendendo o debate sobre neutralidade institucional e tensões comunitárias.
A iniciativa, liderada por administrações locais de perfil progressista, ocorre momentos antes do discurso do presidente Emmanuel Macron na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, onde deve formalizar o reconhecimento — uma promessa feita meses atrás e que provocou forte reação de Israel.
O ministro do Interior da França, Bruno Retailleau — que anunciou sua saída do cargo — havia alertado para o risco de “graves distúrbios à ordem pública” em caso de hasteamento da bandeira palestina diante das prefeituras. Ele também invocou o princípio de neutralidade do serviço público e a não interferência na política externa francesa. Ainda assim, ao meio-dia (7h Brasília), seu ministério contabilizava 52 cidades que mantiveram o hasteamento.
Em Saint-Denis, o prefeito socialista Mathieu Hanotin foi um dos que ergueu a bandeira palestina ao lado das bandeiras francesa e europeia. “Há anos defendo a solução de dois Estados como única via duradoura para a paz no Oriente Médio”, disse ele. “Este é também um gesto de solidariedade diante dos massacres em curso.”
Uma das primeiras a romper com a orientação, a prefeitura de Saint-Denis, ao norte de Paris, contou com a presença do líder do Partido Socialista, Olivier Faure, na cerimônia de hasteamento. “Queremos dizer ao mundo que a França não é apenas o presidente. A França está por trás deste reconhecimento e deseja uma solução de dois Estados”, afirmou Faure.
Em outras cidades, como Besançon e Nantes, o hasteamento da bandeira palestina foi interpretado como um ato de solidariedade diante da grave crise humanitária na Faixa de Gaza. A prefeita de Besançon, Anne Vignot (da sigla Ecologista), justificou a ação como um “apelo por cessar-fogo imediato e reconhecimento do Estado Palestino”, destacando as “violações da dignidade humana” e o número alarmante de vítimas civis desde o ataque do Hamas a Israel em outubro de 2023.
A “polêmica das bandeiras”
Em Malakoff, a prefeita comunista manteve a bandeira palestina desde sexta-feira (19), mesmo após ordem judicial para retirá-la. O juiz determinou multa diária de € 150 em caso de descumprimento.
Em Tarnos, o prefeito Marc Mabillet ironizou: “É mais humano do que político.” Em Carhaix, o prefeito regionalista Christian Troadec reagiu às declarações de Retailleau: “Aqui não haverá apenas a bandeira francesa. Também temos a europeia e a bandeira da Bretanha.” Já em Corbeil-Essonnes, cidade irmã de Jerusalém Oriental, o prefeito anunciou a distribuição de mil bandeiras palestinas à população.
A polêmica sobre o uso de bandeiras em prédios públicos não é nova. Após a morte do papa Francisco, a recomendação do governo para colocar a bandeira francesa a meio mastro foi rejeitada por prefeitos que alegaram violação ao princípio da laicidade.
Segundo o jurista Jean-Paul Markus, “os tribunais só validam esse tipo de gesto quando há um movimento nacional de solidariedade”, como ocorreu com as bandeiras israelense e ucraniana. Já Serge Slama, professor de direito público, argumenta que “não é proibido erguer bandeiras em si. Se o presidente reconhece oficialmente o Estado da Palestina, o gesto dos prefeitos não fere a neutralidade institucional — ele apenas acompanha a posição oficial da França naquele dia.”
Torre Eiffel como palco simbólico
Na noite anterior, a Torre Eiffel projetou simultaneamente as bandeiras de Israel e da Palestina, acompanhadas por uma pomba da paz. A ação, promovida pela prefeitura de Paris, buscava transmitir uma mensagem de equilíbrio e diálogo em meio à escalada do conflito.
No entanto, o gesto foi interpretado de formas distintas: enquanto alguns viram uma tentativa de conciliação institucional, outros, principalmente da oposição, criticaram o que consideraram uma “equiparação entre um Estado reconhecido e um território em disputa”, em meio a uma guerra “assimétrica e desproporcional”.
A exibição reforçou o papel da Torre Eiffel como espaço de expressão política e memorial pública. O monumento já havia sido utilizado anteriormente para homenagens às vítimas de atentados, causas ambientais e campanhas de direitos humanos.
Princípio de neutralidade
A exibição de bandeiras estrangeiras em prédios públicos não é regulamentada por lei na França, mas está sujeita ao princípio da neutralidade institucional. O Tribunal Administrativo de Estrasburgo já ordenou a retirada das bandeiras palestina e israelense em outras cidades, como Nice, reforçando o caráter jurídico delicado da questão.
A controvérsia revela não apenas o embate entre diferentes níveis de poder na França, mas também a dificuldade de manter uma postura institucional neutra diante de conflitos internacionais que mobilizam afetos, memórias e posicionamentos políticos profundos.
A França e o reconhecimento do Estado da Palestina
Ao longo das últimas décadas, a França manteve uma postura ambígua em relação ao reconhecimento do Estado da Palestina. Desde François Mitterrand, que em 1982 defendeu na Knesset o direito dos palestinos à existência, os presidentes franceses têm apoiado a solução de dois Estados, mas evitado formalizar esse reconhecimento. Mitterrand também foi o primeiro a receber no Palácio do Eliseu, em 1989, o então presidente da Organização pela Liberação da Palestina (OLP) Yasser Arafat, num gesto diplomático marcante.
Jacques Chirac reforçou essa linha ao intensificar os laços com a Autoridade Palestina e protagonizar, em 1996, um episódio simbólico em Jerusalém Oriental, ao confrontar soldados israelenses que impediam o acesso da imprensa francesa. Apesar da aproximação, seu governo não oficializou o reconhecimento, mantendo a França como mediadora entre os dois lados do conflito.
Nicolas Sarkozy, mais alinhado aos Estados Unidos e a Israel, reiterou que o reconhecimento deveria ser fruto de negociações diretas. Ainda assim, em 2011, seu governo votou a favor da admissão da Palestina como membro pleno da UNESCO, o que representou um avanço diplomático significativo. François Hollande, por sua vez, evitou o reconhecimento unilateral, mesmo após o Parlamento francês aprovar uma moção simbólica em 2014.
Emmanuel Macron, inicialmente cauteloso, anunciou em julho de 2025 que a França reconhecerá oficialmente o Estado da Palestina durante a Assembleia Geral da ONU. A decisão, tomada em meio à escalada do conflito em Gaza, provocou forte reação de Israel e gerou divisões internas, especialmente diante da pressão internacional por um cessar-fogo e da complexa composição demográfica francesa.
Esse gesto marca uma inflexão histórica na diplomacia francesa, encerrando décadas de hesitação e colocando o país ao lado de outras nações europeias que já formalizaram o reconhecimento, como Suécia, Irlanda, Espanha e Noruega. Ao mesmo tempo, reacende o debate sobre neutralidade institucional e revela os dilemas de uma política externa que busca conciliar princípios humanitários com interesses estratégicos.
Fonte: RFI.