A tensão entre Ucrânia e Rússia entrou em mais um momento crítico nesta sexta-feira (18). O presidente americano Joe Biden afirmou acreditar que o presidente da Rússia, Vladmir Putin, decidiu invadir a Ucrânia e que um ataque de tropas russas à capital da Ucrânia, Kiev, pode acontecer nos próximos dias.
A fala de Biden ocorre em meio a um novo temor do ocidente de que a Rússia usará os conflitos no leste da Ucrânia com um pretexto para invasão.
“Temos motivos para acreditar que as forças russas estão planejando e pretendem atacar a Ucrânia na próxima semana ou nos próximos dias”, afirmou Biden durante uma conferência na Casa Branca. “Acreditamos que eles terão como alvo a capital da Ucrânia, uma cidade de 2,8 milhões de pessoas inocentes.”
“Estamos denunciando os planos da Rússia em voz alta e repetidamente”, afirmou, “não porque queremos conflito, mas porque estamos fazendo tudo ao nosso alcance para eliminar qualquer razão que a Rússia possa dar para justificar a invasão”.
A avaliação do presidente americano marcou uma grande mudança em relação à diplomacia que Biden buscou nos últimos meses, sinalizando um possível início de uma nova fase de tensão entre os países.
Nesta sexta-feira (18), autoridades dos EUA disseram que o número de tropas russas reunidas ao longo das fronteiras da Ucrânia aumentou para aproximadamente 190 mil. Elas afirmaram que a declaração de Moscou nos últimos dias de que a Rússia estava retirando algumas dessas tropas era apenas uma “desculpa” para reposicioná-las.
Há meses, a Rússia vem aumentando sua presença militar nos arredores da Ucrânia, seu antigo vizinho soviético. Biden alertou Putin de que a Rússia pode enfrentar sanções econômicas generalizadas e devastadoras se o Kremlin avançar com um possível ataque à Ucrânia.
Intensos bombardeios na noite desta quinta-feira nas duas regiões separatistas pró-rússia da Ucrânia, Donetsk e Luhansk, voltaram a despertar o receio de que a Rússia usaria os conflitos na bacía de Donbass para justificar uma invasão à Ucrânia. As províncias informaram nesta sexta-feira que estão retirando seus civis.
Ao mesmo tempo, o Kremlim anunciou a realização de grandes exercícios nucleares neste fim de semana que incluirão o lançamento de mísseis balísticos e de cruzeiro, disse o Ministério da Defesa do país. Os movimentos serão acompanhados de perto pelo presidente Vladimir Putin.
Ciberataque
A Casa Branca acusou nesta sexta-feira, 18, a Rússia de ser responsável por recentes ataques cibernéticos contra o Ministério da Defesa da Ucrânia e grandes bancos.
O anúncio de Anne Neuberger, a principal autoridade cibernética da Casa Branca, foi a atribuição mais direta de responsabilidade por invasões cibernéticas que se desenrolam à medida que as tensões aumentam entre a Rússia e a Ucrânia.
Os ataques desta semana foram de “impacto limitado”, já que as autoridades ucranianas conseguiram rapidamente colocar suas redes online novamente, mas é possível que eles estivessem preparando as bases para invasões mais destrutivas, disse Neuberger.
Segundo a autoridade, os EUA ligaram rapidamente os ataques à Rússia e culparam publicamente o Kremlin por causa da necessidade de “revelar o comportamento rapidamente”. E acrescentou que não havia inteligência indicando que os EUA seriam alvo de um ataque cibernético.
Autoridades ucranianas classificaram os ataques de negação de serviço distribuídos, conhecidos como DDoS, na terça-feira, 15, como os piores da história do país.
Mas enquanto eles interromperam os serviços bancários on-line, impediram algumas comunicações do governo para o público e foram claramente destinados a causar pânico, eles não eram particularmente sérios pelos padrões globais ou históricos, disse Roland Dobbins, o principal engenheiro de DDoS da empresa de segurança cibernética Netscout.
“A maioria dos ataques DDoS são bem-sucedidos devido à falta de preparação por parte dos sistemas de defesas”, disse Dobbins, acrescentando que a maioria dos serviços comerciais de mitigação projetados para combater esses ataques provavelmente seriam capazes de repelir os ataques de terça-feira.
A herança da Crimeia
A tensão entre Ucrânia e os russos não vem de hoje. A crise mais recente estourou após a anexação da Crimeia, então território ucraniano, pela Rússia, em 2014. Os conflitos na fronteira leste da Ucrânia deixaram 14.000 mortos nesses sete anos.
“Na prática, já há uma guerra acontecendo desde então”, explica Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Mas os riscos escalaram de vez com o avanço das tropas russas nos últimos meses, vistas pela Ucrânia como clara ameaça à independência do país.
O governo ucraniano, como mostra a fala de Laputina, tenta convencer as potências do Ocidente de que uma invasão russa seria um problema para a estabilidade de toda a Europa e do mundo.
Já a decisão do governo de Vladimir Putin — um ex-espião e declaradamente saudoso dos tempos de União Soviética — de ir adiante com as tropas é uma estratégia para mostrar força no tabuleiro global, como já ocorreu no episódio da Crimeia.
Em novembro de 2013, protestos varreram a Ucrânia exigindo maior integração europeia (movimento que ficou batizado de “Euromaidan”). Sob pressão popular e internacional, o Parlamento depôs o então presidente pró-Rússia, o que Putin viu como uma afronta. Em resposta, o Kremlin apoiou separatistas na Crimeia, onde já vivia numerosa população de origem russa, o que se desdobrou na anexação da região.
“Mas o que mudou, agora, é esse tamanho da ambição russa com relação à Ucrânia”, diz Santoro. “Há sete anos, o objetivo era anexar um território que era estratégico para a Rússia. O que vemos hoje é uma escalada da crise para um objetivo mais amplo, que significa definir quais vão ser as esferas de influência na Europa Oriental, onde vai passar essa linha.”
Por que a Ucrânia é disputada
A Ucrânia tem sido, desde o fim da Guerra Fria, uma fronteira entre a influência das democracias liberais da Europa e a Rússia.
O território que hoje é a Ucrânia chegou a ser parte do antigo Império Russo. Depois, em 1919, virou uma república da União Soviética (URSS). Com o colapso do bloco, a Ucrânia selou de vez a independência em um acordo de 1994, sendo, portanto, uma democracia ainda muito jovem.
Na outra ponta, sem a URSS, a Otan e a União Europeia passaram a agregar nos anos 1990 e 2000 muitos países que eram zona de influência soviética na chamada Europa Central. Assim, países como os Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslovênia e Eslováquia se tornaram membros — a contragosto da Rússia.
Mas a Ucrânia ficou no meio do caminho. Movimentos de aproximação com a União Europeia e a Otan foram feitos ao longo dos últimos anos, além dos protestos populares de 2013 e também em 2004. Não há, no entanto, uma visão coesa no país sobre esse movimento. Enquanto a porção oeste (onde fica a capital Kiev) anseia obter os padrões europeus, a parte leste ainda se vê mais próxima dos russos.
As demandas da Rússia
A Rússia exige, portanto, que a Otan pare sua expansão rumo aos países do leste, e acusa a aliança de estar “cercando a Rússia”.
Outro ponto sensível foi a exigência de que a Otan não posicione tropas em territórios que não pertenciam à aliança em 1997 — ou seja, antes de incluir muitos dos ex-aliados soviéticos, que ficariam, assim, desprotegidos no caso de avanços russos.
Além disso, a crise ucraniana virou agora teste para toda a política internacional, incluindo para a China, outra superpotência em rota de embate com os EUA. O resultado em Kiev mostrará o quanto as potências ocidentais estão dispostas a se arriscar para defender aliados como Taiwan (que se separou da China em 1959 e depende em grande parte da ajuda da Otan).
A China é a maior parceira comercial da Ucrânia e grande compradora de grãos e carne, de modo que interessa a Pequim uma estabilidade no país, diz Santoro, da Uerj.
“Os chineses estão sendo muito discretos quanto à essa crise. Mas há uma relação de muita proximidade entre China e Rússia, ainda que não seja uma aliança militar formal”, diz. “E os chineses estarão observando para ver até onde os EUA irão.”
A real força da Rússia
No tênue jogo da diplomacia e da Defesa, aceitar as demandas russas poderia ser visto como um sinal de fraqueza das potências ocidentais. Outro risco é que o mesmo cenário da Crimeia possa se desenrolar em mais regiões do leste da Ucrânia, também com grande número de russos étnicos. “Existe nesses lugares o que alguns têm chamado de ‘russificação da Ucrânia’, com muitos russos tendo se mudado para essas regiões, incentivados pelo próprio governo Putin”, diz Demétrius Cesário Pereira, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas-Artes.
Além disso, para o Ocidente, o temor é de que a Rússia possa não parar apenas na Ucrânia. Os membros da Otan que são partes da antiga zona de influência soviética ficam, também, sob risco.
Politicamente, as desavenças no exterior são uma das estratégias de Putin para manter sua popularidade e relevância dentro e fora da Rússia.
Nos últimos anos, Putin se envolveu em conflitos que foram de apoiar regimes aliados em Cazaquistão e Belarus contra manifestantes à guerra civil na Síria (onde apoiou o ditador Bashar al-Assad). Dentro de casa, também tem dobrado a aposta contra a oposição. Em 2020, saiu vitorioso em um questionado referendo que o permitirá ficar no poder até 2036.
Em entrevista anterior à EXAME, a cientista política russa Lilia Shevtsova, autora do livro A Rússia de Putin, apontou como o presidente usa “um conflito político atrás do outro” para se “re-energizar” com o eleitorado. E para realçar sua principal força – a militar – para o resto do mundo.
Embora Putin tenha saído com algumas vitórias do episódio da Crimeia, também perdeu ao receber uma série de sanções que pioraram a vida dos russos e levaram a economia a uma recessão entre 2014 e 2015. Longe do poderio da antiga URSS, a Rússia tem hoje economia menor que a brasileira, e depende majoritariamente das exportações de petróleo e gás.
A Rússia vai invadir a Ucrânia?
Há uma série de possibilidades daqui em diante. Algumas apontam para uma invasão da Rússia ou apoio a separatistas somente nas regiões no leste da Ucrânia, mas sem chegar de fato ao restante do país. Um desejo antigo russo é obter uma ligação entre seu território e a Crimeia, por exemplo. Propaganda e desinformação online financiados pela Rússia em todo o país e ataques hackers (como os sofridos por políticos ucranianos neste mês) também são esperados.
Outro cenário, que o governo do Reino Unido chegou a divulgar, é o de que a Rússia planejaria ir além e derrubar o governo do atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, um ex-humorista eleito como presidente em 2019.
A Ucrânia têm treinado até mesmo civis nas últimas semanas para o caso de um ataque. O exército ucraniano deve receber algum apoio financeiro de aliados da Otan, mas não é páreo para os russos. Tropas da Otan não devem se envolver diretamente, uma vez que a Ucrânia não é parte da aliança. (O objetivo seria apenas proteger seus membros na região, como os Bálticos.)
O Kremlin, por sua vez, pode cumprir a promessa de não invadir a Ucrânia por temor de uma eventual retaliação e dos custos financeiros e humanos. Há apostas de que o melhor cenário para Putin é de que consiga um recuo do Ocidente, de modo a se mostrar vitorioso.
O “racha” na Otan
Não está claro quais seriam tais “consequências”. Os Estados Unidos têm se mostrado mais engajados, e o anúncio de que tropas estão mobilizadas foi visto como uma resposta a Putin. Mas as reações são mistas dentro da Otan.
A Alemanha, onde 40% do gás natural vem da Rússia, tem sido historicamente reticente em tomar posições mais duras, tanto militares quanto em sanções financeiras, por temor de uma crise energética. O país também foi criticado pelo governo da Ucrânia por não fornecer armas à resistência ucraniana.
“Em muitas situações há essa discordância entre EUA e União Europeia, e dentro da própria União Europeia”, diz Pereira, da Belas-Artes.
“Alguns países europeus dependem muito mais da energia produzida pela Rússia”, diz, citando que países como Espanha e França são menos dependentes e tendem a ter falas mais duras. O presidente francês Emmanuel Macron também deve falar com Putin nos próximos dias, segundo afirmou nesta segunda-feira, 24.
Enquanto isso, os principais acenos contra Moscou na Europa vieram não da União Europeia, mas do Reino Unido (que, vale lembrar, deixou o bloco após o Brexit).
Isso acontece por alguns motivos: envolto em uma crise interna após ir a uma festa durante o lockdown britânico, faz bem ao premiê Boris Johnson tentar voltar a atenção dos eleitores para o exterior. Além disso, o ilhado Reino Unido está menos exposto à Rússia.
Após a videoconferência da Otan, Biden disse que há “total unanimidade” entre os aliados. Dias antes, europeus pareciam irritados com a visão americana de que uma invasão russa era iminente: o alto representante da União Europeia para as Relações Exteriores, o espanhol Josep Borrell, pediu para que fossem evitadas reações “alarmistas”.
O fato é que europeus estão, a princípio, pouco ansiosos para entrar em um conflito com a Rússia a poucos quilômetros de casa. A Rússia, por sua vez, sabe que um embate com o Ocidente poderia ser catastrófico, inclusive para o governo Putin. Apesar do auge das tensões nos últimos dias, o imbróglio pode ainda levar meses e seguir ao longo de 2022.
Fonte: Exame.