Nos três anos desde a invasão em larga escala à Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados trataram a Rússia como um pária, acusada de violar o direito internacional.
Mas o presidente Donald Trump virou as coisas de cabeça para baixo: ele está restabelecendo relações com Moscou, recusando-se a culpar a Rússia ou declarar a Ucrânia a vítima na guerra.
Para alguns, parece que a “ordem mundial liberal”, com suas raízes na década de 1990, está dando seus últimos suspiros.
A BBC Rússia busca um diagnóstico com especialistas em relações internacionais.
A era da hegemonia liberal
Falando no Castelo Real de Varsóvia em fevereiro de 2023, o então presidente dos EUA, Joe Biden, descreveu a guerra na Ucrânia como uma “grande batalha pela liberdade” travada entre a ordem baseada em regras e uma ordem baseada no poder bruto.
Ao invadir a Ucrânia em 2022, a Rússia não apenas violou o direito internacional aos olhos da maioria das nações, mas também lançou o desafio a uma forma de conduzir os assuntos globais ancorada pelos Estados Unidos.
O termo “ordem mundial liberal” encapsula um sistema de relações internacionais construído com base em compromissos, princípios e normas. Em seu cerne estão o direito internacional e instituições como as Nações Unidas (ONU), sua Assembleia Geral e o Conselho de Segurança.
A Carta das Nações Unidas estabelece princípios fundamentais que regem as relações entre os países, incluindo o respeito à soberania e à integridade territorial, a resolução pacífica de disputas e a rejeição do uso da força.
Ela também consagra os direitos humanos. Cada Estado-membro da ONU — há 193 no total — está vinculado a esses princípios.
A ordem mundial liberal também é pautada por um conjunto específico de valores, como o livre comércio, defendido por instituições como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Por trás de tudo isso, há a crença ideológica de que a democracia liberal ocidental representa o melhor modelo de governo.
A década de 1990 testemunhou o florescimento desses ideais, à medida que dezenas de nações adotaram reformas de mercado e, pelo menos em teoria, governança democrática.
Enquanto muitos apenas prestavam homenagem aos valores liberais, muitas nações em desenvolvimento se beneficiaram economicamente do acesso aos mercados globais — o produto interno bruto (PIB) da China, por exemplo, cresceu em média 9% ao ano por uma década, enquanto Irlanda, Índia, Coreia do Sul, Argentina, Chile e outros também prosperaram.
Nesse período, também houve a resolução de vários conflitos violentos e de longa data, incluindo a luta de décadas entre os separatistas bascos e o Estado espanhol; conflitos na Irlanda do Norte; a guerra da Eritreia pela independência; e a guerra civil no Líbano.
Muitas dessas disputas estavam direta ou indiretamente ligadas à rivalidade da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética.
À medida que a Guerra Fria chegava ao fim, os EUA emergiram como a única superpotência do mundo, frequentemente atuando como mediador em conflitos internacionais.
Entre 1990 e 2015, mais de 1.100 acordos de paz foram concluídos.
Violações do direito internacional podem ser oficialmente designadas por meio de resoluções da Assembleia Geral da ONU ou decisões do Tribunal Internacional de Justiça.
O Conselho de Segurança da ONU pode então impor sanções econômicas ou, em casos extremos, autorizar ações militares.
Na prática, sanções e intervenções militares são frequentemente realizadas sem a aprovação da ONU — algo que a Rússia critica há muito tempo.
No entanto, desde a guerra russo-georgiana de 2008, a Rússia também empregou força militar sem autorização da ONU.
Da perspectiva ocidental, a ofensiva de Putin contra a Ucrânia representa a violação mais flagrante desde a Guerra Fria desta ordem mundial baseada em regras.
“Nós realmente vimos três tipos de princípios radicais de ordem que foram violados”, disse G. John Ikenberry, professor de política e relações internacionais na Universidade de Princeton, ao jornal Financial Times.
“Um é que você não usa a força para mudar fronteiras territoriais. Dois, você não usa violência contra civis como um instrumento de guerra. E três, você não ameaça usar armas nucleares. E Putin fez os dois primeiros e ameaçou o terceiro. Então, esta é uma verdadeira crise para a ordem baseada em regras.”
Em resposta às acusações ocidentais, a diplomacia russa fez da crítica à ordem liberal um dos seus temas favoritos.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, argumenta que a abordagem ocidental não tem consideração pelo direito internacional e pelas instituições da ONU, oferecendo no lugar meras regras arbitrárias que não têm qualquer base em tratados.
Moscou frequentemente aponta para o bombardeio da Iugoslávia pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em 1999; a invasão do Iraque liderada pelos EUA em 2003; e o reconhecimento da independência do Kosovo em 2008 como exemplos de ações ocidentais tomadas sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU — violações, argumenta a Rússia, dos próprios princípios consagrados na Carta da ONU.
Um dos maiores testes contemporâneos da ordem mundial liberal foi a posição de Washington sobre o conflito Israel-Hamas.
Muitos países criticaram duramente o governo Biden por seu apoio militar a Israel, acusando Washington de indiferença às mortes de dezenas de milhares de palestinos.
“É claramente hipocrisia, um padrão duplo”, disse Numan Kurtulmus, o presidente do parlamento da Turquia, em uma entrevista ao Washington Post.
“É um tipo de racismo, porque se você não aceita as vítimas palestinas como iguais às vítimas ucranianas, significa que você quer criar um tipo de hierarquia dentro da humanidade. Isso é inaceitável.”
Ikenberry reconhece que a ordem mundial liberal “estava muito ligada aos Estados Unidos, ao dólar americano, à economia dos EUA”.
“Era a Otan e as alianças, mais do que o Conselho de Segurança da ONU”, disse o professor.
Em suma, ele diz, pode-se pensar nisso como a “hegemonia liberal” dos Estados Unidos da América.
EUA: de detentor da ordem a disruptor
Os países que buscam desafiar a ordem internacional vigente são tradicionalmente rotulados como potências revisionistas.
Políticos e analistas dos EUA há muito tempo aplicam esse termo à China e à Rússia, argumentando que ambas as nações buscam diminuir a influência americana no cenário global.
A competição com tais potências revisionistas foi identificada como uma das maiores ameaças à prosperidade americana em um importante documento de segurança nacional adotado no primeiro mandato de Trump.
“A China e a Rússia querem moldar um mundo consistente com seu modelo autoritário — ganhando poder de veto sobre as decisões econômicas, diplomáticas e de segurança de outras nações”, declarou a Estratégia de Defesa Nacional.
Mas, nos últimos meses, diz o professor Ikenberry, são os próprios Estados Unidos que se tornaram a principal potência revisionista do mundo.
Segundo ele, o governo Trump está trabalhando para desmantelar “quase todos os elementos da ordem mundial liberal — comércio, alianças, migração, multilateralismo, solidariedade entre democracias, direitos humanos”.
“Meu governo está rompendo decisivamente com as falhas de política externa do governo anterior e, francamente, do passado”, já afirmou Trump.
Ao contrário de outras mudanças radicais introduzidas por sua equipe, a mudança será especialmente difícil para o Congresso e o judiciário bloquearem, já que a política externa está diretamente sob a autoridade do presidente.
Em janeiro, o secretário de Estado, Marco Rubio, atacou aqueles que pensam que a ordem mundial liberal poderia substituir uma política externa centrada em interesses nacionais.
“Isso não era apenas uma fantasia; era uma ilusão perigosa”, disse Rubio em um discurso ao Senado.
É precisamente destacando o interesse dos EUA que o governo Trump justificou a reaproximação com a Rússia.
“Acreditamos que o conflito contínuo é ruim para a Rússia, ruim para a Ucrânia e ruim para a Europa. Mas o mais importante, é ruim para os Estados Unidos”, escreveu o vice-presidente, J.D. Vance, na rede social X.
Em seu discurso de posse em janeiro, Trump prometeu restaurar o status dos EUA como a nação mais poderosa do mundo, recuperar o controle sobre o Canal do Panamá e até mesmo expandir o território dos Estados Unidos.
A revolução diplomática de Trump continua sendo sua política menos popular, no entanto.
Uma pesquisa recente mostrou que os americanos gostam de suas políticas de imigração acima de tudo, enquanto sua posição sobre a guerra na Ucrânia e o conflito Israel-Hamas recebe o menor apoio.
Enquanto isso, mais de dois terços consideram a Ucrânia um Estado aliado ou amigável, com quase metade mostrando uma avaliação favorável ao presidente Volodymyr Zelensky.
Fonte: BBC.