Falta de chuvas prolongada avança em direção ao sul do Chile, causa migração de milhares de moradores e provoca morte de dezenas de milhares de animais.
“Os animais estão morrendo de fome, de desnutrição. Também não podemos cultivar nada porque não há água para irrigar. Estamos em um ponto crítico, não aguentamos mais.”
A fala é de Aldo Norman, um agricultor de 33 anos que dedicou toda a sua vida à agricultura e à criação de gados. Seu amado vale de Colliguay, na região de Valparaíso, no Chile, costumava ser um local verde, com flora e árvores nativas, como o quillay (típica do Chile).
Hoje, porém, nada disso é visto nas redondezas de sua casa. Em vez de grama, há terra e os poucos arbustos parecem a ponto de cair.
“Isso é sério porque está afetando o modo de vida das pessoas, não podemos mais produzir ou alimentar nossos animais”, acrescenta.
A triste realidade que Aldo Norman enfrenta não está isolada. O mesmo está acontecendo com famílias em sete regiões do Chile, do norte do deserto do Atacama até a região de Ñuble, no centro-sul do país.
A razão? A seca intensa que atinge o país sul-americano e que se arrasta há pelo menos dez anos.
Em 2019, no entanto, o problema ficou mais grave.
A capital do país, Santiago, por exemplo, teve apenas 81 milímetros de chuvas neste ano, de acordo com a Direção Meteorológica do Chile. Enquanto isso, Valparaíso, segunda cidade mais importante do Chile, teve apenas 82 mm de precipitações – a média histórica é de 397 mm.
Como comparação, embora seja três vezes maior em território que Santiago, a cidade de São Paulo registrou 1.272,7 milímetros de chuvas de janeiro a setembro, segundo o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), órgão da prefeitura. Só em fevereiro, foram computados 375 mm.
O mesmo cenário de falta de chuvas se repete em várias áreas do Chile, com um déficit de mais de 85% em cidades como La Serena, no norte.
E a previsão para o futuro não é animadora, porque a temporada primavera-verão está apenas começando, e as temperaturas, no centro do Chile, já estão acima de 30ºC.
Segundo o governo e especialistas do Chile, esta é a crise hídrica mais profunda desde 1968.
A escassez de chuvas causou um colapso nos sistemas de irrigação de várias províncias do país, e milhares de pessoas tiveram que ser abastecidas com água por meio de caminhões-pipa.
34 mil animais mortos
Cerca de 34 mil animais morreram em virtude da seca.
Segundo o Ministério da Agricultura do Chile, existem também 470 mil cabras, 170 mil bois e vacas e 150 mil ovelhas em “más condições” – ou seja, os animais estão desnutridos e fracos.
A situação é ainda pior se considerarmos que, com o gado magro, os preços por animal caíram acentuadamente, enquanto o valor da forragem para alimentá-los disparou.
“O preço de um bezerro chegava a 200 mil pesos (cerca de R$ 1,1 mil, em cotação atual) e agora está em apenas 60 mil pesos (R$ 348)”, explica Aldo. Ele acrescenta: “Se você não tem recursos, não pode comprar forragem… É por isso que as pessoas estão decidindo vender seus animais a qualquer preço, para que eles não morram”.
A apicultura (criação de abelhas) também foi severamente afetada pela seca. A escassez de água fez com que muitas plantas não florescessem como deveriam, de acordo com o seu ciclo natural. Portanto, o néctar necessário para as abelhas não está sendo produzido.
“Quem deixar suas abelhas aqui vai simplesmente perdê-las”, diz Andres, um apicultor que, depois de 25 anos em Quilpué – região de Valparaíso -, decidiu mudar suas 260 colméias para Linares, uma cidade localizada no centro-sul do Chile.
Migração para o sul do país
“Eu nunca tinha visto nada assim, a seca está muito acentuada. Há pessoas avaliando se vale a pena continuar aqui, ou se é hora de comprar algo mais ao sul e simplesmente migrar”, acrescenta o apicultor.
A fala de Andrés não é aleatória: alguns produtores, de fato, já decidiram se mudar para mais ao sul.
Em 12 de setembro, por exemplo, 180 pequenos produtores foram transferidos com seus animais das áreas de Illapel e Salamanca, na região de Coquimbo, para um local perto de Ñuble.
O mesmo está acontecendo, mas em escala maior, em outras cidades da região, como o Monte Patria. Segundo um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), 15% da sua população da área (cerca de 5 mil pessoas) já emigraram por razões climáticas.
E, de acordo com a prefeita da região de Coquimbo, Lucia Pinto, essa área está passando por um processo de desertificação que “não tem retorno”.
Mudanças climáticas e desertificação
Mas qual é a dimensão da seca chilena e qual o papel das mudanças climáticas em tudo isso?
Segundo a meteorologista María Alejandra Bustos, embora tenham sido observadas secas comparáveis à atual no Chile, como as dos anos 1924, 1968, 1988 e 1998, a grande diferença é que essa crise hídrica ocorre durante um período de 10 anos secos consecutivos.
“Isso faz com que ele tenha características mais agudas. E, além disso, a frequência desses eventos tem aumentado”, disse Bustos à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
O pesquisador do Escritório de Mudanças Climáticas do Chile acrescenta que “a tendência média de precipitação entre 1961-2018 diminuiu em 23 mm por década para todo o país, uma queda particularmente concentrada nas zonas central e sul”.
Em relação à importância das chamadas mudanças climáticas para a escassez de água no Chile, existem diferentes posições.
María Alejandra Bustos afirma que, enquanto o Centro de Ciência do Clima e da Resiliência, conhecido como (CR) 2, ressalta que cerca de um quarto do déficit de chuvas é atribuível à mudança climática antrópica, existem outras publicações – como uma recentemente desenvolvida pela Fundação Chile – que determina que, dentre as causas, apenas 12% dessa queda pode ser explicada por esse fator
Mesmo assim, há uma coincidência no fato de que a desertificação esteja avançando nos solos do norte, centro e sul do Chile. Esse fenômeno – que tem a ver com a degradação do solo – afeta a produtividade, a biodiversidade e o ecossistema como um todo.
Segundo um relatório recente publicado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a desertificação afeta 2,7 milhões de pessoas em todo o mundo.
Na investigação, chamada “Mudança climática e terra”, há um capítulo especial sobre o Chile, que afirma que a erosão do solo afeta 84% do território da região de Coquimbo, 57% do território de Valparaíso e 37% do solo na área de O’Higgins.
Francisco Meza foi o único chileno que participou da elaboração do relatório. O pesquisador, do Centro de Mudança Global da Universidade Católica do Chile, diz que o processo de desertificação está avançando por duas razões.
“Primeiro, porque vemos sinais de erosão e perda de capacidade produtiva da terra, e também porque estamos passando por uma seca muito importante. Foi o que mais nos impactou nos últimos dez anos”, disse ele à BBC News Mundo.
Deserto cresce rumo ao sul
Agora, há quem afirme que os limites do deserto de Atacama – o mais seco do mundo – esteja se movendo para o sul.
Com base em um relatório chamado Atlas de Mudanças Climáticas da Zona Árida do Chile, a meteorologista María Alejandra Bustos diz que, enquanto a zona central do Chile sempre teve um “regime semi-árido”, as tendências do regime de aridez mostram um avanço do limite do deserto em direção ao sul”.
Francisco Meza, entretanto, diz que o deserto está avançando “porque estamos experimentando uma tendência muito forte de aridez e porque vemos padrões muito acentuados de degradação da terra”.
No entanto, ele esclarece que esse avanço não é físico. “Não é que as areias estejam se movendo para o sul”, diz ele.
Para o acadêmico, essa desertificação não tem apenas a ver com fatores climáticos. O manuseio inadequado da terra – como a exploração excessiva e a falta de medidas de restauração – também é um ponto fundamental na explicação da degradação.
“Quando a terra é degradada dessa maneira, a riqueza das espécies é empobrecida, então você perde a diversidade e o ecossistema é enfraquecido”, explica Meza.
Obras de irrigação e investimento
Atualmente, existem 56 municípios sob um decreto de escassez de água em cinco regiões do Chile: Coquimbo, Valparaíso e Metropolitana, O’Higgins e Maule. Mais de 100 localidades, entretanto, foram declaradas zonas de emergência agrícola.
Segundo o governo, os fluxos fluviais nessas áreas têm déficits de até 84% em comparação com as médias históricas.
“As mudanças climáticas chegaram para ficar e temos que agir”, disse o ministro da Agricultura do Chile, Antonio Walker.
O ministro acrescenta que “a desertificação é uma realidade e o grande desafio agora é como lidar com esses solos degradados e transformá-los em matéria orgânica e de alto carbono”.
Para fazer isso, Walker diz que grandes obras de irrigação devem ser produzidas.
“Não construímos a infraestrutura de irrigação para tirar proveito da água. Precisamos fazer reservatórios, uma nova institucionalidade da água, tratar esgotos, entre outras ações”, diz ele.
“Esta é uma estação muito difícil, e a seca é mais grave do que a de 1968, porque, com a mesma pluviosidade, temos uma agricultura, uma economia e uma população muito maiores”, acrescenta o ministro.
Mas, até que esses investimentos sejam feitos, a verdade é que produtores e fazendeiros como Aldo Norman não encontrarão uma solução a longo prazo.
A única saída, diz Norman, é migrar para o sul ou desistir da criação de gado.
“Não vamos aguentar mais um ano seco”, lamenta.
Fonte: BBC.