As relações entre vários países foram prejudicadas com a pandemia de coronavírus. As tensões se concentram em questões como a disponibilidade de medicamentos e equipamentos médicos, além de críticas sobre como cada país tem combatido a propagação da doença.
Os atritos entre autoridades brasileiras e a China foram notícia nas últimas semanas, mas não são os únicos.
A Espanha, por exemplo, é um dos países mais afetados pela pandemia de coronavírus e precisa desesperadamente de equipamento médico, especialmente nas regiões mais afetadas pelos casos mais graves da Covid-19.
Porém, os esforços para obter suprimentos foram dificultados por uma disputa com o governo turco, já que o embarque de centenas de respiradores comprados por entidades de saúde de três regiões espanholas foi retido pela Turquia, por onde o carregamento precisaria passar.
A mídia espanhola citou fontes locais que descrevem as situações como “roubo”. Depois de quase uma semana de idas e vindas, o ministério das Relações Exteriores da Espanha conseguiu garantir o embarque.
Mas o episódio é outro exemplo de como a Covid-19 está alimentando tensões diplomáticas em todo o mundo.
Por que tantas tensões estão surgindo?
As brigas entre Estados Unidos e China também estão no centro das atenções, especialmente com incidentes como a ameaça do presidente dos EUA, Donald Trump, de congelar fundos para a Organização Mundial da Saúde (OMS) sob o argumento de que a instituição é “chinacêntrica”.
Mas pontos de conflito surgiram em outros lugares. E nem sempre envolvendo a China, que enfrenta acusações de subnotificação dos números de infecções.
“Em teoria, deveríamos ter visto nações se unindo em um momento em que todos estamos travando a mesma batalha”, disse à BBC Sophia Gaston, cientista política do Instituto de Questões Globais da London School of Economics (Escola de Economia de Londres).
“Na prática, essa crise obrigou os países a se fecharem, se preocuparem com seus próprios problemas, com mais concorrência do que cooperação”.
Um exemplo é uma disputa dentro das nações da União Europeia (UE).
Quando os casos da Covid-19 dispararam na Itália, o país pediu aos vizinhos assistência com equipamentos e suprimentos médicos. Tanto a Alemanha quanto a França, no entanto, proíbem a exportação desses produtos.
“Certamente, este não é um bom sinal de solidariedade europeia”, escreveu Maurizio Massari, embaixador da Itália em Bruxelas, no site Politico.
Os italianos também não ficaram impressionados com outro cabo de guerra com Berlim. A Alemanha é um dos países que se opõe a uma proposta de uma espécie de “vaquinha” colaborativa entre os países da União Europeia para ajudar os que estão mais afetados pela pandemia.
A diplomacia das máscaras
Os Países Baixos, a Áustria e a Finlândia também se opuseram publicamente ao plano, enquanto Espanha, França, Bélgica, Grécia, Irlanda, Portugal, Eslovênia e Luxemburgo apoiaram a criação dessa espécie de fundo coletivo. Isso mostrou ainda mais divisões dentro dos países da UE.
A Itália também é um estudo de caso sobre o que os especialistas descrevem como a “diplomacia das máscaras” da China: depois de controlar o coronavírus dentro de suas próprias fronteiras, Pequim inundou vários países de vários continentes com todo tipo de ajuda para combater a doença — entre os destinatários, a Rússia.
Roma recebeu doações de suprimentos médicos, kits de testes e até uma força-tarefa de médicos chineses que foram considerados heróis. De fato, a hashtag #grazieCina (obrigada China, em italiano) é uma tendência nas mídias sociais italianas.
Gesu Antonio Baez, diretor executivo da Pax Tecum, empresa de consultoria com sede em Londres, especializada em questões diplomáticas e de desenvolvimento internacional, diz que o país está explorando um vácuo deixado pelos Estados Unidos no cenário global — e que foi exacerbado por Donald Trump com seu lema “América em Primeiro Lugar”, com o qual conquistou a presidência em 2016.
De qualquer forma, a posição de Washington está longe de ser conciliatória: além das brigas com a China, Trump deixou as autoridades alemãs enfurecidas quando tentou garantir direitos exclusivos para uma vacina contra a Covid-19 desenvolvida por uma empresa médica alemã.
Mais recentemente, o presidente ameaçou a Índia de retaliação por sua decisão de proibir a exportação do medicamento antimalária hidroxicloroquina, que está sendo testado como tratamento para a Covid-19, mas cuja eficácia ainda não foi comprovada.
“Os EUA não atuaram (como potência diplomática) durante esta crise e a China agora tem uma oportunidade de preencher essa lacuna”, explicou Baez.
A “diplomacia das máscaras” não é um processo tranquilo, como o Brasil mostrou.
A percepção de que a China não conseguiu lidar com o primeiro surto da Covid-19 com rapidez suficiente também levou ao ressentimento internacional, de acordo com Sophia Gaston.
Brigas entre o Brasil e a China
Gaston citou relatórios das agências de inteligência americanas que acusam a China de esconder as infecções e mortes no país. Autoridades britânicas também questionaram os dados oficiais chineses.
“A China tem estado sob escrutínio ao mesmo tempo em que iniciou esse enorme exercício de relações públicas. Haverá uma reação enorme quanto mais soubermos sobre seus números”, acrescentou Gaston.
As relações entre o Brasil e a China também sofreram, com vários aliados do presidente Jair Bolsonaro entrando em brigas com a potência asiática através de postagens nas redes sociais, em que tentavam emplacar o uso da expressão “vírus chinês”.
No incidente mais recente, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, irritou as autoridades chinesas com um tweet em que escrevia palavras errado que seus colegas asiáticos consideraram racista.
“Tais declarações são absurdas e desprezíveis e têm forte tom racista”, dizia um tweet da Embaixada da China em Brasília.
A China é o maior parceiro comercial do Brasil — compra 80% da soja do país, por exemplo — e as autoridades de saúde brasileiras já estavam lutando para obter ventiladores e suprimentos de saúde da China antes da intervenção do Weintraub.
Alimentando tensões pré-existentes
“Este caso mostra por que a diplomacia é necessária mais do que nunca”, diz Gesu. “Os países precisam avaliar a situação e lidar com o medo da forma adequada”.
Mas o vírus também está derramando gasolina no fogo de disputas pré-existentes. Entre elas a entre a Colômbia e a Venezuela.
As autoridades colombianas não reconhecem o regime do presidente venezuelano Nicolas Maduro como legítimo, e os dois países vizinhos estão em desacordo após uma forte movimentação de migrantes venezuelanos na fronteira.
A briga mais recente ocorreu em 1º de abril e foi motivada pela oferta de Maduro de duas máquinas de testes da Covid-19 para o presidente colombiano, Ivan Duque.
Nos dias anteriores, houve relatos da mídia de que a única máquina de diagnóstico da Colômbia havia quebrado temporariamente.
A oferta foi recebida em silêncio pelo escritório de Duque, para grande aborrecimento de autoridades da Venezuela, como a vice-presidente Delcy Rodriguez.
“O governo de Ivan Duque rejeitou as duas máquinas doadas pelo presidente Maduro. É mais uma demonstração do desprezo de Duque pela vida e saúde do povo colombiano”, ela tuitou.
Em uma entrevista de rádio transmitida em 7 de abril, Duque disse que as máquinas “não eram compatíveis com o tipo de testes, o tipo de reagentes, nem o material usado na Colômbia”.
No Oriente Médio, Catar e Egito discordaram sobre o destino de cidadãos egípcios presos no Catar.
As autoridades do Catar, que estão lidando com o maior número de casos registrados da Covid-19 nos países do Golfo, disseram à rede de televisão Al Jazeera que as autoridades egípcias se recusaram a aceitar um vôo com trabalhadores migrantes fretado pelo emirado.
O Egito faz parte de um grupo de nações árabes que, desde 2017, cortaram todos os laços diplomáticos com Doha por alegações de que seu regime apoia grupos extremistas.
Mais razões para discussões do que máscaras e bloqueios
Mas as tensões são causadas por mais do que máscaras ou bloqueios.
Em 18 de março, vazou um relatório da União Europeia acusando os meios de comunicação influenciados pela Rússia de espalhar notícias falsas sobre a Covid-19 no Ocidente. Um porta-voz do governo russo chamou as acusações de “infundadas”.
Se as divisões parecem aumentar, alguns especialistas também identificam situações positivas em meio à pandemia.
Annalisa Prizzon, do instituto de pesquisas Overseas Development, diz que a crise está oferecendo oportunidades para uma maior cooperação.
“A crise está mostrando que os países desenvolvidos nem sempre são os ‘especialistas'”, disse Prizzon.
“A maneira como a China compartilhou conhecimento com a Itália para mitigar o impacto do surto é, novamente, um exemplo oportuno e visível”.
Mas Sophia Gaston ainda acha que mais cooperação é necessária.
“É uma oportunidade perdida, especialmente para os países ocidentais em tempos de crescente populismo e nacionalismo”, diz. “Este deve ser um momento para demonstrar o poder da cooperação”.
“Em vez disso, muitas estratégias estão piorando as relações entre os países”, conclui.
Fonte: BBC.